sábado, 1 de abril de 2017

A Adoção do Pai, pela obra do Filho mediante o Espírito

"Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus. Por essa razão, o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo. Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é. E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele é puro."  (1Jo 3.1-3)
   Podemos inferir a importância da doutrina da adoção ao olharmos um dos versos mais importantes do Novo Testamento, que diz: "vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei" (Gl 4.4); este verso é de suma importância pois nos remete ao proto-evangelho de Gn 3.15, aonde fora prometido aos primeiros pais um descendente da mulher que triunfaria sobre a serpente; e somos informados que este descendente da mulher, que veio no tempo pré-determinado, é também um legítimo Filho enviado pelo Deus Pai. Porém eu quero chamar a sua atenção para o verso seguinte que nos revela o propósito de Deus em enviar seu Filho: "para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos" (v.5). Cristo veio em resgaste daqueles que estavam sujeitos a maldição por causa da quebra da lei perfeita de Deus; sejam os judeus, órfãos pela quebra dos mandamentos (Lm 5.3-7), ou os gentios, pelo desprezo da lei gravada em seus corações que os acusam (Rm 2.14,15). Ele veio para chamar "povo meu ao que não era meu povo" (Rm 9.25), seja judeu ou gentio, sem distinção pois "ambos tem acesso ao Pai em um Espírito. Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus" (Ef 2.18,19).

   A adoção esta intimamente ligada com a doutrina da eleição. Podemos perceber melhor isso ao olharmos para o modo humano de adotar alguém, ou seja, um pai e uma mãe, por mais que eles tenham planejado uma gravidez, eles sequer escolhem o sexo da criança, o que dirá das demais fisionomias ou personalidades dela. Mas quando está relacionado com a adoção, há vários fatores que levam um casal a adotar uma criança específica, certamente ela é escolhida por esses fatores e motivações internas. Podemos perceber claramente esse pensamento análogo também nas palavras de Paulo aos Efésios: "assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo beneplácito de sua vontade" (Ef 1.4,5). A adoção não aconteceu na eternidade, a eleição sim, porém o alvo da eleição, feita na eternidade pelo Pai, foi a adoção de seus filhos. Eleitos na eternidade para sermos filhos perante Ele, por meio de Jesus Cristo.

   Como em todas as demais doutrinas, a adoção também tem o agir mútuo, perfeito e completo da Trindade na vida do cristão. Meu desejo aqui, é analisar biblicamente a economia de cada pessoa da Trindade em relação a nossa adoção ao povo de Deus. Primeiro, ver a paternidade de um Deus que não é apenas um agente criador de todas as coisas, mas Aquele que, em sua providência sobre toda a criação, guarda aqueles que lhe pertencem. Segundo, veremos que a essência de que há um Pai, é porque há um Filho que é eternamente gerado por Ele; antes de haver criação, antes de haver filhos, o Filho sempre existiu eternamente, e Cristo, não nós, é o motivo principal de Deus ser Pai. Terceiro, a aplicação que o Espírito faz em nossa consciência de que pertencemos a alguém, e que nada nos retira esse status de filhos. Por último, é preciso entender que a adoção é o intermediário entre a justificação e santificação do crente em Cristo, é aquilo que liga diretamente o primeiro com o último.

A Paternidade de Deus.

   Deixarei para tratar no próximo tópico o motivo essencial de Deus ser Pai, ou seja, por causa do Unigênito e posteriormente Primogênito, Jesus Cristo; desde a eternidade Deus tem a sua paternidade, Ele não se tornou Pai após a sua criação, mas isso é o que Ele é e sempre foi em essência eterna. Por hora veremos como Deus é Pai também do seu povo, eleito desde a eternidade. Tudo indica que Deus na criação de Adão e Eva, tinha em mente um relacionamento diferente com eles em relação ao restante da criação, uma relação paternal e pessoal. Primeiro, eles foram criados a imagem e semelhança de Deus, tornando-os ímpar em toda a criação (Gn 1.26,27). Segundo, parece que o fato de Deus caminhar no jardim do Éden na viração do dia, e após a queda "não encontrar" Adão e Eva no lugar habitual, faz-nos pensar que isso era rotina diária, ou seja, havia entre eles um relacionamento pessoal, semelhante de pais e filhos (Gn 3.8,9). Terceiro, a disciplina de Deus em Adão e Eva é uma atitude paternal que reverbera em todo o restante das Escrituras (Gn 3.22-24; Dt 8.5; Pv 13.24; Hb 12.5-11). Isso tudo, ou seja, Adão e Eva como filhos de Deus, está de modo implícito nos primeiros capítulos das Escrituras, mas que Lucas o coloca de modo explicito em sua genealogia do Salvador: "Cainã, filho de Enos, Enos, filho de Sete, e este, filho de Adão, filho de Deus" (Lc 3.38).

   Obviamente o conceito de adoção só se torna necessário após a queda, já que somente depois de Gênesis 3 vemos a humanidade, como consequência do pecado, rejeitar ao seu Criador, rejeitando assim também sua paternidade. Nesse sentido o homem estava agora "livre" de uma autoridade maior, para viver da maneira que lhe agrade, acumulando para si mesmo morte e condenação, ou em outras palavras, estavam órfãos, entregues a si mesmos. "Entretanto, reinou a morte desde Adão até Moisés" (Rm 5.14), o conceito de Deus como Pai vai aparecer de forma explicita pela primeira vez na Bíblia somente em Israel no êxodo, ainda que seja de forma implícita sobre os patriarcas antes deles: "Dirás a Faraó: Assim diz o SENHOR: Israel é meu filho, meu primogênito" (Ex 4.22). Aqui vemos novamente a adoção relacionada com a eleição, começando pela eleição de Abraão e agora com sua numerosa descendência adotada por Deus Pai; mas percebemos que a adoção também está intrinsecamente unida a aliança e suas promessas, afinal de contas Deus "lembrou-se da sua aliança com Abraão, com Isaque e com Jacó" (Ex 2.24). Por causa da aliança que fez com os patriarcas, Ele pôde chamá-los de filhos. A prova disso é que Israel, sendo povo de propriedade exclusiva de Deus, recebe os mandamentos e diretrizes de um viver santo, aplicando disciplina quando necessário, algo semelhante com o que um pai faz a seus filhos ainda pequenos, educar e corrigir.

   Se o amor de Deus Pai é evidente em toda a criação, ele parece resplandecer muito mais após a queda. Não que o seu amor fosse diminuto na obra da criação perfeita, mas quando Deus demonstra amor a seres caídos, assemelhasse ao raiar do sol no crepúsculo da humanidade, iluminando as trevas e aquecendo sua frieza espiritual, como disse Paulo ele "prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores" (Rm 5.8). O Verbo se fez carne e habitou entre nós não quando estávamos em nossa Inocência no Éden, mas em nossa perversidade fora dele; o amor que o Pai tem pelo seu povo, e que na eternidade sempre existiu com o Filho, é abundantemente exposto em nossas fraquezas e limitações. Nenhum pai humano, por melhor que seja, pode assemelhar-se a tão grande amor, como esse revelado a nós miseráveis homens que somos, pelo Pai da eternidade. É esse amor, o fio condutor da paternidade de Deus com Israel; seja na sua redenção, pois aquilo que Ele fez aos egípcios foi "por amor de Israel" (Ex 18.8), ou posteriormente na sua restauração necessária, consequência do cativeiro babilônico após a apostasia do povo, "por amor deles, me lembrarei da aliança com os seus antepassados" (Lv 26.45).

   Mas então surge uma grande questão a ser resolvida. Se Israel é o povo da adoção, da glória, das alianças, da legislação, do culto e das promessas do Deus Pai (Rm 9.4), por que nem todos foram salvos em Cristo? Paulo responde:
"E não pensemos que a palavra de Deus haja falhado, porque nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; nem por serem descendentes de Abraão são todos seus filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência. Isto é, estes filhos de Deus não são propriamente os da carne, mas devem ser considerados os filhos da promessa."  (Rm 9.6-8)
   Para apoiar seu argumento de que nem todo Israel é israelita, e nem todo aquele que descende de Abraão é de fato filho de Deus, e ao mesmo tempo fazendo a conexão entre a eleição e a adoção, Paulo vai ilustrar o que disse nesses versos fazendo agora menção de dois outros descendentes de Abraão, aonde Deus amou um porém rejeitou o outro:
"E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto á eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú."  (Rm 9.11-13)
   O verdadeiro Israel de Deus são aqueles que na eleição eterna são agora participantes da adoção por meio da obra do verdadeiro Filho de Deus, o Unigênito que tornou-se o Primogênito de seus irmãos. É necessário agora olhar a diferença entre os filhos do Filho.

O Filho de Deus: Unigênito e Primogênito.

   Ao afirmar que Cristo é Filho de Deus Pai, automaticamente fazemos a distinção, não divisão, de pessoas que há na Divindade, ou seja, afirmamos a Trindade. Cristo sempre foi o Filho e o Pai sempre foi o Pai. Digo isso para não entrarmos no erro de achar que somente em sua encarnação Cristo se tornou Filho, por nascer de uma mulher e do Espírito. Calvino percebeu o erro de raciocinar desse modo e escreveu:
"(...)Tampouco esta distinção teve início a partir de quando a carne foi assumida; ao contrário, é manifesto que também antes disso ele foi o Unigênito no seio do Pai [Jo 1.18]. Pois, quem ousa afirmar que o Filho ingressou no seio do Pai quando, finalmente, então desceu do céu para assumir a natureza humana? Portanto, ele estava no seio do Pai e mantinha sua glória junto ao Pai antes disso [Jo 17.5]."  (Institutas 1.13.17)
   Ele é Filho por natureza eterna do Pai, nós somos filhos por adoção pela obra de um mediador; e esse mediador designado pelo próprio Pai não é outro senão o próprio Filho eterno. É nesse sentido que o Filho se distingue dos filhos de Deus, portanto ele é o Unigênito por ser o único Filho legitimamente divino e eternamente gerado do Pai. Usando novamente a ilustração terrena, os filhos adotivos são escolhidos pelos pais, já os filhos naturais são de natureza e procedentes dos pais, no caso de Cristo, procedência e natureza eterna com o Pai. Como diz a pergunta número 33 do Catecismo de Heidelberg: "Porque ele é chamado de Filho Unigênito de Deus, se nós também somos filhos de Deus? Resposta: Porque somente Cristo é o eterno e natural Filho de Deus. Nós contudo somos filhos de Deus por adoção, pela graça, por causa de Cristo".

   O que nos leva agora a segunda característica de Cristo como o Filho de Deus, em primeiro lugar ele é o unigênito, sendo o único de natureza e procedência eterna de Deus, e em segundo lugar ele é o "primogênito entre muitos irmãos" (Rm 8.29). A isso precisamos primeiramente ponderar acerca da afirmação de Paulo de que Ele é o "primogênito de toda a criação" (Cl 1.15), será que Paulo está dizendo que Cristo é a primeira criação de Deus? Estariam os arianos corretos ao afirmarem que Jesus é também uma criatura de Deus? Não é o que o contexto imediato deste capítulo nos diz; "Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste" (v.17), "porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude" (v.19), e que plenitude é essa? Paulo mesmo responde: "porquanto, nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade" (2.9). Certamente Paulo não estava ensinando a filiação de Cristo por meio de criação por parte de Deus, mas sim que por ser o primogênito de toda a criação ele tinha a primazia e a herança sobre todas as coisas. "Tudo foi criado por meio dele e para ele" (1.16). Ele é o cabeça da criação assim como é também o cabeça da igreja (v.18).

   Mas, voltando ao verso 29 de Romanos capitulo 9, Paulo diz que ele é o "primogênito entre muitos irmãos". O que significa para nós essa expressão? Calvino, no seu catecismo, usou esse verso para distinguir a filiação por natureza de Cristo e a filiação que é comunicada a nós pela sua graça. Ele é o "primogênito de entre os mortos" (Cl 1.18), ou seja "Cristo ressuscitou dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem" (1Co 15.20), ele, o primeiro a ressuscitar dos mortos deu ao povo da aliança a ressurreição dentre os nossos pecados, pois, "estávamos mortos em delitos e pecados" (Ef 2.1), e ele nos deu vida. Como diz Paulo: "Adão, foi feito alma vivente. O último Adão [Cristo], porém, é espírito vivificante" (1Co 15.45). A sua semelhança de ressuscitar dentre os mortos é comunicada a nós, quando somos regenerados para vivermos na família de Deus. Logo, ressuscitados de nossa morte do pecado, somos feitos semelhantes a ele e por isso somos filhos de Deus por adoção; e também "se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados" (Rm 8.17).

   Essa herança bendita, esperança dos filhos, não é somente a participação de bençãos conquistada por Cristo aos eleitos, por mais que isso seja verdade. Mas as Escrituras deixam claro que o caminho até a glorificação é um caminho de sofrimento. Somos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, no sentido de que também participaremos dos sofrimentos de Cristo aqui, "com ele sofremos, também com ele seremos glorificados", por entender isso, que Paulo podia orar para conhecer a Cristo não somente o poder da sua ressurreição, mas também a comunhão dos seus sofrimentos, conformando-se com ele na sua morte (Fl 3.10). Talvez pensemos que não há, então, nenhuma vantagem em ser filho de Deus, se temos uma herança como essa. Acredito que é por isso que após mencionar a herança e participação no sofrimento de Cristo, que Paulo vai escrever o que chamo de pináculo da graça de Deus (Rm 8.18-39), e aqui cito somente o verso 18:
"Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós"
   Mas, vamos agora ao motivo de Paulo, assim como nós, ter dentro de si tanta certeza dessa futura glória dos filhos de Deus.

O selo do Espírito em nós: o penhor da nossa herança.
"Mas aquele que nos confirma convosco em Cristo e nos ungiu é Deus, que também nos selou e nos deu o penhor do Espírito em nosso coração".  (2Co 1.21,22)
"[...]em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; o qual é o penhor da nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua glória".  (Ef 1.13,14)
   O Espírito Santo é aquele que certifica em nosso espírito de que realmente somos filhos de Deus, sem ele não seria possível a certeza de nossa filiação, sem ele só o que nos resta é o desespero da orfandade; é viver sem a certeza, não somente de que há um Criador, mas de um Pai. Ele mesmo, o Espírito que procede eternamente do Pai e do Filho (Jo 15.26), testifica em nosso coração que somos realmente filhos de Deus, eleitos desde a eternidade (Rm 8.14,15; Gl 4.6). Ele é o selo e o penhor da nossa herança. J.I. Packer argumentando sobre a posição de John Owen, um dos maiores teólogos puritanos, disse que a nossa segurança na salvação é resultante desta selagem em nós:
"A segurança de salvação, como uma condição consciente da mente e do coração, induzida pelo testemunho do Espírito, ocorre como resultado da selagem, e não como parte integral do ato em si"  (Entre os Gigantes de Deus, p.310) 
   Somos seguros em Cristo porque tempos o selo do Espírito em nosso coração. Richard Sibbes, também puritano e que tinha algumas divergências com John Owen em relação ao selo do Espírito, tem uma posição que pode ser muito valiosa também para nosso estudo. Ele afirmava que o selo do Espírito servia como sinal de autenticidade, fazendo distinção entre o crente e o mundo (Joel R. Beeke e Mark Jones, Teologia Puritana, p.824):
"O Espírito nos sela não por causa de Deus, mas por nossa causa mesmo. Deus sabe quem é dele, mas nós não sabemos que somos dele senão pelo selamento."
   Como é revigorante ter a certeza de que pertencemos ao Pai por meio da obra do Filho, aplicada e confirmada em nós pelo Espírito de adoção. Haveria maior consolação em nós do que essa? Diante disso poderia algo nos separar do amor de Deus Pai? Esse sempre foi o motivo da igreja perseguida se manter firme em suas resoluções, mesmo diante do martírio. O que faria alguém morrer pela sua fé senão essa certeza? Podemos ter a certeza dos sofrimentos e mesmo assim nos alegrarmos em Cristo, pois temos tão grande penhor dado pelo Pai dentro de nós, em nosso intimo que alivia a nossa consciência em meio as maiores tribulações. Tão grande penhor esse, que fez Paulo escrever essas palavras:
"Pois, na verdade, os que estamos neste tabernáculo gememos angustiados, não por querermos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja absorvido pela vida. Ora, foi o próprio Deus quem nos preparou para isto, outorgando-nos o penhor do Espírito."  (2Co 5.4,5)
Adoção: o intermediário entre a justificação e a santificação.

   A maioria dos teólogos colocou a adoção entre a justificação e a santificação. Não acredito que tenha sido por acaso. Primeiro, porque diferente do que muitos pensam, a justificação de distingue em muito na adoção. Segundo, a adoção corretamente compreendida e apreendida em nosso coração nos leva a uma vida de santificação.

   Justificação não é adoção, há uma grande diferença entre os dois conceitos. A justificação tem o pano de fundo ilustrativo do tribunal, já a adoção, ainda que seja humanamente falando efetuada em um tribunal ou cartório, tem como predominância a imagem de um lar familiar. Em uma Deus nos declara justos, pelo pagamento justo na morte de seu Filho, na outra, já declarado justo, nos faz participantes de seu povo e suas promessas. É como se um juiz, sentado em sua tribuna vestindo a sua toga, batesse o martelo diante do réu e o declarasse justo para a sociedade, isso é justificação. Mas a adoção é quando esse mesmo juiz, saindo de sua tribuna e retirada a sua toga, chama esse mesmo réu para ir a sua casa, sentar em sua mesa, comer a sua comida e tudo isso no mesmo patamar de sua esposa e demais filhos. Tanto um (justificação) quanto o outro (adoção) fazem a graça e o amor de um Pai nos constranger e nos prostrar até o mais profundo pó da terra.

   A adoção também esta intimamente ligada a santificação. Compreender que somos filhos salvos da Ira de Deus, faz de nos não somente servos obedientes pelo temor, mas também filhos que amam a vontade do Pai. Ao contrário do que muitos pensam, a segurança de nossa filiação, e consequentemente de nossa salvação (se somos filhos, logo somos salvos), não nos faz vivermos negligentes com uma vida piedosa, antes nos leva a obediência humilhante diante de tão grande graça, tão grande amor, tão grande esse nosso Pai. Somos seus filhos, como negligenciar isso.

A Graça e a Paz de Cristo a todos os que o amam.

quarta-feira, 22 de março de 2017

Seremos mais completos em Deus do que Adão e Eva foram no Éden.

     "A meditação sobre o futuro escatológico do povo de Deus é perda de tempo para cristãos que, ao invés de gastar tinta e pensamentos naquilo que é o porvir, deveria estar preocupado com o agora." Pode parecer fútil esse argumento para aqueles que estão no caminho da fé reformada, mas a triste realidade eclesiástica da pós-modernidade, pelo menos da grande maioria, é trilhar por um caminho semelhante a esse argumento. "A preocupação prioritária da Igreja", dizem, "deve ser transformar esse mundo sombrio em um Jardim do Éden que foi perdido". Porém, por trás deste pressuposto, está o esquecimento de que essa utopia não é o fim bíblico estabelecido por Deus a este mundo caído e seus habitantes. Certamente não era esse tipo de pensamento que Pedro tinha em mente ao escrever:
"Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas. Visto que todas essas coisas serão hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade." (2Pe 3.10,11)
Isaías também de maneira bem parecida diz:
"Eis que vem o Dia do Senhor, dia cruel, com ira e ardente furor, para converter a terra em assolação e dela destruir os pecadores. Porque as estrelas e as constelações dos céus não darão a sua luz; o sol, logo ao nascer, se escurecerá, e a lua não fará resplandecer a sua luz. Castigarei o mundo por causa da sua maldade e os perversos, por causa da sua iniquidade; farei cessar a arrogância dos atrevidos e abaterei a soberba dos violentos. Farei que os homens sejam mais escassos do que o ouro puro, mais raros do que o ouro de Ofir. Portanto, farei estremecer os céus; e a terra será sacudida do seu lugar, por causa da ira do Senhor dos Exércitos e por causa do dia do seu ardente furor". (Is 13.9-13) 
     A própria colocação de Cristo de que nós somos a luz deste mundo, implica que ele se encontra em trevas profundas. Não há esperança para este mundo caído que caminha rumo a ruína; e aqui não estou pregando contra a sustentabilidade moderna do mundo, mas segundo as promessas de seu Criador o fim inevitável é a sua destruição total, e apesar de ser boas as ações para "salvar" os recursos que ele nos dá, nenhuma ação humana pode impedir ou adiar este fim. Portanto, ainda que a própria igreja tenha autoridade dada por Deus para vencer as obras do maligno e triunfar sobre ele e seu sistema escravagista, para uma sociedade como a nossa, no fim nem a igreja consegue mudar o destino final deste planeta. Podemos, como tem se visto na história, transformar valores e estilos de conduta corrompidos dentro de uma sociedade, aplicando a lei de Deus no seu sistema moral, e com isso espelhar, nem que seja de modo ofuscado, a imagem de Deus na sociedade. De fato a igreja tem ajudado a humanidade a refrear seu impulsos, podemos ver isso em países que tem no seu sistema legal aplicações diretas de princípios bíblicos; mas em meio a tudo isso ainda sim o fim deste mundo é inevitável.

     Estou dizendo tudo isso para mostrar que o fim de todo homem regenerado por Deus não é transformar este mundo num novo jardim, mas sim, como diz o Catecismo Maior de Westminster em sua resposta a primeira pergunta "Qual é o fim supremo e principal do homem?": "O fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre". É obvio que o "para sempre" implica algo que vai muito além deste mundo, que por certo não durará uma eternidade. Certamente fomos chamados para viver uma vida piedosa em plena luz, em contraste com aqueles que fazem suas obras nas trevas de tão vergonhosas, mas "se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens" (1Co 15.19).

Deus nos chama para olharmos para frente e não para trás.

     Há uma música que pode nos ajudar a compreender melhor este argumento elaborado, eis o refrão:
"Ah, que saudade. Que saudade de ouvir a tua voz ao entardecer. Ah, que vontade. Que vontade de voltar ao jardim da Inocência." (Paulo César Baruk, Jardim da Inocência)
     Essas palavras expressam de forma perfeita o pensamento de alguns cristãos romantizados de que devemos voltar aquele jardim do qual nunca deveríamos ter saído, e por conta disso, apesar de ser uma bela canção, está longe de ser bíblica. De fato, nunca deveríamos ter saído de lá, pois Deus nos colocou lá e tudo em perfeita harmonia com sua soberana e agradável vontade, mas certo é que saímos daquele jardim, e agora a solução não é voltar a ele ou criar o nosso próprio jardim aqui. Pelo contrário, na primeira promessa de um Redentor, Deus nos convida a olhar para frente e não para trás, parafraseando o proto-evangelho: "virá um descendente da mulher, aquele que triunfara sobre a serpente" (Gn 3.15, compare com Gl 4.4). O ponto aqui é que Adão e Eva agora deveriam ter esperança no futuro com a vinda de um Salvador e não saudades de algo que fora lacrado e interditado para eles.

     Por toda a grande história da redenção nós vemos esse princípio de olhar para o futuro e não para trás. Abraão manda buscar uma esposa para Isaque entre seus parentes na sua terra natal, mas de modo algum é pra ir até la, pois ele tem a frente ainda uma terra prometida pelo Senhor (Gn 24.7,8). Israel era desaprovado por Deus quando lembrava do Egito e se esquecia dá terra que estava por vir, a terra prometida a seus pais (Ex 16.3; Nm 11.5). A mulher de Ló, por algum motivo olhou para trás e pereceu no caminho sem chegar em segurança a cidade que a livraria da ira de Deus (Gn 19.26). Ao começar a reconstrução do templo em Jerusalém, após sua destruição o povo estava olhando para trás e por isso muitos choraram ao lembrar da glória do templo antigo (Ed 3.12,13), mas apesar de não ter a mesma beleza daquele que fora construído por Salomão, ainda sim o profeta Ageu pode dizer que "a glória desta última casa será maior do que a primeira" porque certamente olhava para frente, para um futuro de redenção e glorificação, não para trás e nem para o que estava diante dele naquele momento.

     Diante disso, devemos nos preocupar em viver o agora de modo a glorificar e se alegrar em Deus, mas também devemos meditar e se deleitar em esperança no vigoroso "para sempre" que há de vir. Naquele "dia" estaremos de alguma forma, em certa vantagem em relação aos primeiros pais: Adão e Eva. Para compreender isso vamos analisar os três principais estágios do homem: (1) a inocência do Éden, (2) a queda e suas consequências, (3) a redenção e glorificação final.

A Inocência, a Queda e a Glorificação

1) A Inocência:
"Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, sexto dia." (Gn 1.31)
     Se pudesse usar somente uma palavra para descrever a criação de Deus em Gênesis 1 e 2, esta seria ela: "bom". Deus na criação, apesar de não finalizar cada dia com a descrição de que aquilo era bom, diz no final, ao olhar tudo o que fizera, e estabelece como "muito bom". Para fechar ele abençoa e santifica o sétimo dia para mostrar que tudo estava perfeitamente completo, ou em outras palavras, "está consumado". Se partimos do pressuposto de uma teologia saudável, atribuindo corretamente a Deus as qualidades que Lhe pertencem e que são de sua natureza, chegaremos a conclusão que aqueles atributos chamados comunicáveis são de maneira inerentemente ligados a sua criação. Por exemplo, se a bondade faz parte dos atributos de Deus, então a sua criação é necessariamente boa e não menos que isso. Deus é santo, então a sua criação estava envolta em santidade; pode se ver isso em Adão e Eva, que andavam nus no jardim e não se envergonhavam (Gn 2.25). Não vemos nenhum relato de injustiça, fraude ou mentira nos capítulos 1 e 2, por que a justiça intrínseca de Deus permeava toda a criação. Certamente seria até loucura tentar achar resquício de idolatria nesses capítulos, porque era impossível outro alvo do amor e devoção de Adão e Eva senão o próprio Criador. Em resumo, Adão e Eva juntamente com toda a criação, eram completos em Deus.

     Para suplementar essa completude de Adão e Eva a bíblia diz que eles foram criados à imagem e semelhança de Deus. Representando assim a Deus em toda sua criação e tendo domínio sobre ela. Eles também tinham "a Lei de Deus escrita no seu coração e o poder de cumpri-la" (Confissão de Fé de Westminster 4.2). Mas aqui é importante relembrar que nem todos os atributos de Deus são comunicados ao ser humano e à sua criação.
"Porém, Adão e Eva não eram imutavelmente santos e, por isso, eram passíveis tanto de tentação quanto de pecado. Como a Confissão de Fé de Westminster deixa claro, ambos tinham 'a possibilidade de transgredir [a lei], sendo deixados à liberdade da sua própria vontade, que era passível de mudança' (4.2). Quer dizer, Deus criou Adão em pureza moral com a necessária capacidade inata de cumprir as condições da aliança das obras. Adão e Eva eram portadores da imagem de Deus, mas eram diferentes de Deus em vários aspectos importantes, um dos quais era sua mutabilidade". (Joel R. Beeke e Mark Jones; Teologia Puritana, p. 309)
2) A Queda:
"Eis o que tão somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias". (Ec 7.29)
     Por não possuir a imutabilidade de Deus, e por se ver diante de uma tentação à desobediência direta ao mandamento de Deus, que de acordo com as palavras do próprio Deus levariam à morte, o homem faz do capítulo 3 de Gênesis provavelmente o mais sombrio de toda a bíblia, pois é nele que se registra a queda da humanidade. Se algum dia existiu alguém com livre-arbítrio no nosso meio, Adão e Eva foram os tais. Deus transporta Adão ao jardim para lavrar a terra e expressamente coloca diante dele dois caminhos: a árvore da vida ou a árvore do conhecimento do bem e do mal, a obediência ou a desobediência, a vida ou a morte. Ao mesmo tempo que Adão tinha o poder e a capacidade inata de obedecer conforme vimos na CFW, obviamente não havia nele a incapacidade de desobedecer; o relato bíblico prova isso, pois eles desobedeceram. É a queda do homem. Precisamos responder pelo menos duas perguntas acerca disso: primeiro,"A imagem de Deus no homem foi afetada pela queda?" e segundo, "A posteridade de Adão se torna herdeira desta transgressão?".

     Em primeiro lugar, será que a imagem de Deus foi afetada pela queda? Certamente que sim! O principal indício é que o relacionamento entre Deus e o homem não foi mais o mesmo; a imagem de Deus no homem é aquilo que o torna exclusivo em toda criação, ou seja, ele é o único a se relacionar com o Criador de forma pessoal, mas a queda certamente afetou isso, como se vê na expulsão do jardim. Mas também o fato do homem não mais se relacionar uns com os outros de maneira saudável e pura, demonstra como essa imagem foi afetada (Caim e Abel, Lameque, dilúvio e assim por diante). Porém é importante frisar aqui, que apesar de ter a imagem de Deus no homem sido afetada pelo pecado, ela não foi de todo aniquilada, como diz João Calvino:
"Quando Adão caiu de seu estado original, não há a mínima dúvida de que, por esta defecção, ele veio a alienar-se de Deus. Portanto, embora concordemos que a imagem de Deus não foi nele aniquilada e apagada de todo, todavia foi corrompida a tal ponto que, qualquer coisa que lhe reste, não passa de horrenda deformidade." (As Institutas 1.15.4)
      Há ainda no homem, mesmo no estado de queda, resquício da imagem de Deus que é inata a ele, a prova disso é o mandamento de Deus a Noé após o dilúvio de não derramar o sangue do homem "porque Deus fez o homem segundo a sua imagem" (Gn 9.6). Ela ainda está lá, mesmo sendo ofuscada pela corrupção do pecado, que também se tornou inato ao homem. Ela foi afetada, porém não aniquilada; o que já responde a segunda pergunta, essa queda afetou os descendentes de Adão? Mais uma vez, certamente que sim! Nos tornamos herdeiros dessa desobediência e tão corruptos e inimigos de Deus quanto Adão foi, talvez piores. Quando Adão gera um filho, esse filho não tem mais a imagem perfeita e santa de Deus, mas sim a sua própria imagem corrompida (Gn 5 1-3). O apóstolo Paulo retifica isso dizendo:
"Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram." (Rm 5.12)
      Em resumo, a queda desfigurou não apenas a imagem de Deus em Adão e Eva, mas em toda humanidade posterior a eles, já que eles eram o tronco de toda civilização (At 17.26). Pessoalmente, eu vejo aqui a maior beleza do evangelho de Cristo encarnado. Ele não veio ao mundo no período de Inocência do homem, mas quando este se encontrava em total degradação. Se um rei viesse até seu país, é certo que ele seria levado pelos seus governantes aos lugares mais belos e turísticos; mas o Rei do universo veio entre nós, e andou não em meio a mansões ou monumentos, não em lugares admiráveis e belos, e sim em um beco escuro e úmido de uma humanidade caída, veio e andou entre nós quando sua criação se encontrava em destruição e degeneração, e é isto que o torna simplesmente mais gracioso do que já é.

3) A Glorificação:
"Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é." (1Jo 3.2)
      Sem a esperança bendita de uma gloriosa vida futura e completa em Deus, a parte deste mundo, as riquezas que adquirimos aqui só nos tornariam os mais infelizes de todos os homens. A grande boa notícia do evangelho de Cristo é saber que Deus, mesmo em meio a escuridão que sua criação adentrou, tem o seu povo de propriedade exclusiva sua, que foram previamente predestinados "para serem conformes a imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito de muitos irmãos" (Rm 8.29). Ele veio para resgatar este povo, e "não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, (...), mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo" (1Pe 1.18,19). A bíblia diz que quando nossos olhos são desvendados para contemplarmos a glória de Deus no evangelho de Cristo, desvendar esse que não procede de nós mas do Espírito Santo, somos então transformados "de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito" (2Co 3.18). Ao decorrer do Novo Testamento, fica evidente que em Cristo, a imagem de Deus é gradualmente restaurada em seu povo.

     De acordo com 1 João 3.2 ainda não se manifestou o que haveremos de ser, deixando uma ideia implícita de que a nossa glorificação final e perfeita ocorrera somente em sua revelação final, escatologicamente falando. Mesmo regenerados e salvos do domínio do pecado, ainda não somos a perfeição que seremos no fim. Podemos ver isso pelo fato de sermos chamados, nesse mundo ainda caído, a participarmos dos sofrimentos de Cristo (Fp 3.10, 2Tm 1.8), porém com a esperança de que também participaremos da sua glorificação (Rm 8.17). Mas precisamos responder uma ultima pergunta, de que forma seremos mais completos naquele grande Dia?

     Primeiro, não viveremos mais alienados de Deus, pois "Deus habitará com eles" (Ap 21.3). Literalmente Deus fará um tabernáculo permanente entre os remidos, algo que não parece muito obvio no jardim do Éden com Adão e Eva, que aparentemente não tinham contato integral com o Criador, afinal após a queda eles "ouviram a voz de Deus, que andava no jardim pela viração do dia" (Gn 3.8); será que Deus andava somente no jardim quando virava o dia? Não sabemos, mas o fato de pecarem e desobedecerem deixa implícito que não havia naquele momento contato visual ou audível de Deus, do contrário eles não pecariam. Segundo, Adão e Eva tinham a capacidade tanto de obedecer como também de desobedecer à Deus, fazendo o que bem entenderem de seu livre-arbítrio, eles tinham dois possíveis caminhos a trilhar, a árvore da Vida ou a árvore do conhecimento do bem e do mal, ou seja, desobedecer era uma possibilidade; algo que não haverá de forma alguma na Nova Jerusalém, aonde só há a descrição da árvore da vida, e que por causa dela "nunca mais haverá maldição" (Ap 22.2,3). Ironicamente, o livre-arbítrio que tem causado tantas controvérsias na historia da Igreja não existe no novo céu e na nova terra, não existe a possibilidade de pecar naquela eternidade e talvez esse seja o maior motivo de estarmos em vantagem em relação a Adão e Eva no jardim. Terceiro, se o pecado não existe mais e não é uma possibilidade futura, consequentemente aniquilada será a morte, o choro, o luto e a dor, assim como seus derivados que causam sofrimento (Ap 21.4).

     Já me desculpando pelas muitas palavras e com temor lembrando que, "no muito falar não falta transgressão" (Pv 10.19) quero terminar com algumas palavras a mais. Será que é perda tempo meditarmos no futuro e suas implicações? Pode de alguma forma este tipo de meditação afetar nossa vida prática hoje? Creio que a resposta da primeira pergunta seja "não", mas para a segunda afirmo com um vigoroso "sim". Certamente se não tivermos esperanças acerca de uma vida futura e gloriosa em Cristo, seremos semelhantes aos mais infelizes que já habitaram neste mundo caído. Em contrapartida se guardarmos firmemente a razão de nossa esperança final em Cristo, estaremos em uma fé viva e piedosa olhando, com a mesma fé, a perfeita completude que nos aguarda. Se isso não influencia a nossa vida diária, receio de nossa real conversão.

A Graça e a Paz de Cristo a todos os que o amam.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

O jovem sem juízo, a mulher inquieta e o marido ausente: Uma perspectiva bíblica do adultério.

     Preciso confessar que foi extremamente difícil achar palavras para um prelúdio adequado desta matéria em questão caro leitor. É obvio que o motivo dessa luta é o assunto a ser abordado. Afinal de contas, falar de adultério não é como comentar os lances da partida do final de semana, ou como falar da notícia que abalou o planeta no último mês. Apesar do adultério ser algo que abala a estrutura de toda uma sociedade saudável, não enxergamos mais dessa forma na era pós-moderna, que trata esse assunto com a mesma trivialidade que uma partida de futebol. Falo isso com pesar nas palavras, mas o adultério se tornou corriqueiro em nossa geração. Basta uma breve olhada nas mídias de nosso país, para se chegar a tal conclusão. Por ser ele assim tão trivial hoje em dia, é o que o torna um assunto tão difícil.

     Apesar da palavra "adultério" ser empregada também para casos de fraudes, falsificações e alterações (de alguma coisa); pretendo utiliza-lo aqui somente no sentido conjugal e relacional a duas partes em uma aliança, tal como o casamento. Mas não se engane, não pense que o que se segue é apenas uma mensagem direcionada aqueles que escondem uma vida dupla de sua esposa ou marido.Não! Esta mensagem é pra você, um legítimo filho de Adão, que dia após dia se vê assombrado pelos próprios desejos que brotam no coração. Porque o que é o adultério, se não a quebra de uma aliança entre um casal por meio de uma relação extraconjugal. E que é o pecado, se não a quebra de seu relacionamento com Deus. Não foi isso que Adão e Eva fizeram no Éden? Tiraram os olhos do seu Criador e, com desejos e tentações, flertaram com aquilo que não é Deus. Esta palavra é pra você que está em uma relação extraconjugal as escuras, mas também é pra você que diariamente sucumbe aos desejos e tentações adulterando contra o seu Criador. Pra você, que assim como eu, é um legítimo filho de Adão.

Dom Casmurro e Provérbios: duas perspectivas diferentes.

     Essa difícil questão me enfadou quando fazia a leitura de Dom Casmurro, do gênio brasileiro chamado Machado de Assis. Digo enfadou porque grande foi o meu aborrecimento ao ver no decorrer de uma história de amor puro, que nasce no coração de duas crianças (Bentinho e Capitu), mas que é pervertido com uma suspeita de adultério no decorrer da trama. As cenas de romance entre os dois adolescentes é digna de um filme premiado pela academia de Hollywood. Cenas que nos trazem a memória momentos de crianças e adolescentes, quando amamos pela primeira vez e tudo sem malícia, sem sequer a conotação sexual, que é tão normal quando crescemos, casamos e ficamos experimentados na vida. Tudo isso, na história de Bentinho e Capitu, é deflorado pela dúvida eterna do narrador. Uma dúvida que fica sem resposta, mas não sem um fruto, Ezequiel surge na história, e fica sendo um filho possível dessa dúvida. Tudo indica que Ezequiel é filho, não de Bentinho, mas talvez daquele que foi terceirizado, Escobar. Bentinho não responde, fica a dúvida. Mas só ela já é suficiente para macular o leito de um casal, de tão sério que é o assunto; talvez agora entenda a minha labuta com as palavras no inicio. Em todo caso, o réu é inocente na ausência de provas e testemunhas, de um lado temos Bentinho usando todos os recursos nesse tribunal para provar aquilo que nem ele tem certeza, por outro lado a dúvida permanece eterna. Esta é a perspectiva de Dom Casmurro: dúvida. Ezequiel é ou não fruto de um adultério? Não sabemos e nunca saberemos.

     O que sabemos é que a simples menção do adultério mancha o mais puro amor. Eis ai porque este é um assunto de tanta importância para nós cristãos. Se não fosse assim, ele não se encontraria entre os dez mandamentos: "Não adulterarás". Mas, além de estar entre as duas tábuas da Lei, é também um assunto muito peculiar no livro de Provérbios, principalmente nos primeiro sete capítulos (sendo dois deles, capitulo 5 e 7, exclusivos para o adultério). Segundo Bill T. Arnold:
"O livro de Provérbios dá continuidade a temas de outras partes do Antigo Testamento ao contrastar dois modos de vida. De um lado estão aqueles que rejeitam as leis de Deus e recusam-se a manter a aliança. Provérbios chama esses indivíduos de 'néscios' e sua escolha de vida é 'loucura'. Do outro lado estão aqueles que zelosamente mantêm o seu relacionamento com Deus e praticam os caminhos que são chamados de 'sábios', e suas vidas são caracterizadas pela 'sabedoria'." (Descobrindo o Antigo Testamento, p. 316)
     Ou em outras palavras, um é fiel e o outro não, caracterizando o que podemos chamar de adultério espiritual. Mas é claro que a primeira interpretação é em relação a pureza sexual desse fiel. Bill T. Arnold vai continuar dizendo:
"Tendo em vista a repetição das palavras 'filho meu' e das diversas referências à instrução do pai e aos ensinamentos da mãe, os ditados em 1.8-9.18 são uma série de 'conversas de pai para filho'. Esses ditados com frequência contrastam a imoralidade sexual com a devoção à sabedoria, que envolve pureza sexual." (p. 317)
      O capítulo em questão que quero expor, é o sétimo de Provérbios, que deixa bem claro essa visão de conselhos de um pai para o filho. Algo totalmente démodé em nossa época, é esse conceito de um pai educar e alertar seu filho acerca do adultério; não é a toa que vivemos tempos difíceis nessa área. Mas esse é o real contexto de Provérbios 7, um pai que pela observação adverte seu filho de algo mortal, como é o adultério. Diferente de Bentinho em Dom Casmurro, que nos deixa dúvida e incerteza em relação ao adultério, ao olharmos para a Bíblia somos esclarecidos em relação a verdade mortal dele. Olhemos então por essa perspectiva.

Provérbios 7
"Filho meu, guarda as minhas palavras e conserva dentro de ti os meus mandamentos. Guarda os meus mandamentos e vive; e a minha lei, como a menina dos teus olhos. Ata-os aos dedos, escreve-os na tábua do teu coração. Dize à Sabedoria: Tu és minha irmã; e ao Entendimento chama teu parente; para te guardarem da mulher alheia, da estranha que lisonjeia com palavras." (7.1-5)
     Em primeiro lugar, nós vemos aqui os imperativos de um pai para o filho. Não apenas conselhos, mas imperativos: "guarda as minhas palavras", "conserva dentro de ti", "guarda os meus mandamentos", "ata-os aos dedos", "escreve-os na tábua do seu coração". Com absoluta certeza vemos os imperativos de um sábio para alguém com falta de instrução. E esses imperativos são para o objetivo explicito no final: "para te guardarem da mulher alheia, da estranha que lisonjeia com palavras". Desprezar os mandamentos do pai era claramente se render a mulher estranha que seduz com palavras. Quer vencer os desejos e a concupiscência do seu coração desenfreado, e a tentação de palavras sedutoras? O pai diz: "guarda as minhas palavras" (Sl 119.11). Mas o contrário também é verdadeiro; você quer ser o mais vil pecador deste lugar? É simples, despreze essas palavras, rejeite-as e jogue fora, e você se verá em densas trevas (Sl 119.105).

     Os dias mais sombrios para o reinado de Israel foi durante o anos de Manassés, o pior rei que existiu em sua monarquia. Um homem que fez uma nação ruir em meio a idolatria (2Rs 21.1-9), um homem que introduziu uma nação em meio as trevas. Manassés morre, e reina em seu lugar seu filho Amom, que segue pelo mesmo caminho impio do pai (2Rs 21.19-24). Amom morre e surge uma luz no fim do túnel ao subir no trono Josias, seu filho de apenas oito anos. Este Josias vai começar a reparar os erros de seu avô e pai, reformando o templo e tirando-o das ruínas que se encontrava. E em meio a obra da restauração descobrimos algo sobre o motivo de tudo isso: o livro da Lei de Moisés estava perdido e foi achado. Chego então a conclusão que uma nação inteira ruiu porque havia desprezado essas palavras, e só depois de acha-lá ouve reforma verdadeira.

     Foi assim, de modo semelhante com a Igreja Cristã. Quando a igreja abandonava a palavra de Deus, entrava em seu meio palavras entranhas e sedutoras, heresias e erros doutrinários, e a igreja se via flertando com o mundo em pleno adultério com seu Salvador: Jesus Cristo, o Noivo. Essa relação extraconjugal só acabava quando Deus levantava homens e mulheres para se voltarem novamente para a palavra; será que não precisamos de uma nova Reforma? É por esse motivo que vemos aqui um pai e seu imperativo: "guarda as minhas palavras, conserva dentro de ti".

Duas observações
"Porque da janela da minha casa, por minhas grades, olhando eu, vi entre os simples, descobri entre os jovens um que era carecente de juízo, que ia e vinha pela rua junto à esquina da mulher estranha e seguia o caminho da sua casa, à tarde do dia, no crepúsculo, na escuridão da noite, nas trevas."  (7.6-9)
      A primeira observação que o pai faz a seu filho, foi aquilo que viu da janela de sua casa: um jovem (ou outro de seus filhos pela tradução da palavra hebraica "ben") que é carente de juízo, alguém que certamente está desprezando as palavras de sabedoria. Quando o autor diz sobre esse individuo como alguém "simples", não está usando a conotação de alguém humilde, mas a palavra no original é de um tolo. O próprio contexto de Provérbios nos dá esse sentido da palavra, nas onze vezes que a palavra é utilizada serve para qualificar alguém sem prudência (1.4; 7.7; 8.5; 9.4,16; 14.15,18; 19.25; 21.11; 22.3; 27.12). Não é um jovem simples de humilde condição, mas simplesmente um tolo sem juízo. A sua atitude vai comprovar o veretido do seu observador! Porque o que esse tolo fazia enquanto aquele observava? "Ia e vinha pela rua junto à esquina da mulher estranha e seguia o caminho da sua casa" (v.8).

     O caminhar deste homem não daquele que caminha em sua rotina. Não é alguém caminhando do trabalho para casa, algo normal do seu dia-a-dia. Não se engane, o andar deste homem não é o andar de um trabalhador ou alguém inocente que é tentado no meio de sua rotina. Veja que ele anda "junto a esquina da mulher estranha". A NVI (Nova Versão Internacional) foi muito feliz na escolha de suas palavras na tradução desse verso: "(ele está) andando em direção a casa dela". É o caminhar de um tolo planejando tolices, é um andar de alguém que está a espreita, e ansioso por algo. E dentro do contexto é talvez o andar de alguém que esta esperando a saída do marido. Um tolo fazendo tolices, e aquilo que faz é vergonhoso demais para ser visto pelos outros, pois aquilo que faz, ele o faz na escuridão da noite, nas trevas (Ef 5.11,12; 1Ts 5.7). Esta é a primeira observação: um homem que está borbulhando em suas paixões, totalmente dominado pelos desejos de seu coração.
"Eis que a mulher lhe sai ao encontro, com vestes de prostituta e astuta de coração. É apaixonada e inquieta, cujos pés não param em casa; ora está nas ruas, ora, nas praças, espreitando por todos os cantos. Aproximou-se dele, e o beijou, e de cara impudente lhe diz: Sacrifícios pacíficos tinha eu de oferecer; paguei hoje os meus votos. Por isso, saí ao teu encontro, a buscar-te, e te achei. Já cobri de colchas a minha cama, de linho fino do Egito, de várias cores; já perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamomo. Vem embriaguemo-nos com as delícias do amor, até pela manhã; gozemos amores. Porque o meu marido não está em casa, saiu de viagem para longe. Levou consigo um saquitel de dinheiro; só por volta da lua cheia ele tornará para casa". (7.10-20)
     Em seguida, olhando ainda de sua janela, este homem continua a observar, e o que vê é provavelmente a mulher da qual a casa era rodeada, e essa mulher vai ao encontro daquele tolo. E é impressionante o contraste na descrição dessa mulher com a do capitulo 31 conhecida como mulher virtuosa. Enquanto aqui temos alguém com vestes de prostituta e astuta de coração, a mulher virtuosa é aquela que "a força e a dignidade são os seus vestidos" (31.25). Aqui temos uma mulher "apaixonada e inquieta, cujos pés não param em casa; ora está nas ruas, ora, nas praças, espreitando por todos os cantos", já aquela que é cheia de virtudes "atende ao bom andamento da sua casa e não come o pão da preguiça. Levantam-se seus filhos e lhe chamam ditosa; seu marido a louva" (31.27,28). As palavras da mulher virtuosa são "com sabedoria, e a instrução da bondade está na sua língua" (31.26), já a mulher estranha ataca o tolo com palavras de sedução e insinuação. Esta mulher não está com boas intenções, ela percebe que diante dela está alguém dominado pelos seus desejos, e em vez de ajuda-lo, repreende-lo e se afastar dele, em vez disso ataca-o dizendo: "já perfumei o meu leito... vem vamos nos embriagar com as delícias do amor". Qual é o resultado de palavras como essa para um homem que está sucumbindo as tentações internas? Não seria a sua queda?

     Duas conclusões podemos tirar desta mulher. Primeiro, é evidente que esta mulher tem uma certa religiosidade, pelas palavras "sacrifícios pacíficos" e "paguei hoje os meus votos", porém certamente é uma ortodoxia morta. O adultério faz ao ser humano uma vida dupla de duas formas, primeiro com Deus, depois com o cônjuge. A segunda conclusão é que esta mulher pode estar relacionando o ato extraconjugal com um tipo de culto religioso (algo normal na cultura pagã da época), pois ela preparou o seu quarto como se fosse um templo de adoração, com colchas e linho fino, com perfumes preciosos. E vemos aqui mais um contraste com a mulher virtuosa: uma prepara a própria cama como um templo de adoração, enquanto a outra faz de seu corpo o verdadeiro templo (31.22). Quando abandonamos a adoração ao Deus único e verdadeiro é tendencioso que nos voltemos para adorar aquilo que nos domina e escraviza.

     Então ela termina a sua fala: "Venha, porque o meu marido não está em casa, saiu de viajem para longe... só por volta da lua cheia ele tornará para casa". O que essa mulher está insinuando para aquele tolo, que não é nenhuma vítima, é que ele poderia vir sem medo, que não haveria risco, não há perigo naquilo que estão prestes a fazer. Ninguém saberá, ficará entre nós, não tenha medo. "Vem, embriaguemo-nos com as delícias do amor, até pela manhã".

Uma advertência

    Essa é a observação que esse pai vê de sua janela: Um tolo, uma mulher inquieta e astuta de coração, um marido ausente e sabemos a conclusão. Além de ser um retrato perfeito de um ato de adultério nos dias de hoje, não seria esse também um retrato exato da total depravação da humanidade em relação a Deus?

     Não seria aquele homem tolo e sem juízo uma imagem perfeita de nós mesmos, quando estávamos em trevas, sem Cristo? Desprezávamos os juízos e as palavras de Deus, caminhando totalmente dominados pelos desejos carnais que são intrínsecos ao ser humano caído. Vivendo para o nosso próprio prazer, espreitando e rodeando o lugar da tentação (Tg 1.14). Somos nós, seduzidos e atraídos pelo pecado.

     Não seria aquela mulher um quadro perfeito para o mundo e para o sistema em que vivemos? Aproveitando-se de nossas fraquezas para seduzir-nos. Um mundo atraente, como uma mulher com vestes de prostituta, e que se aproxima de nós com beijos e palavras que seduzem. Um mundo cujo o seu deus é a satisfação dos prazeres e desejos, e ai de você se não se tornar um adorador e prestador de culto neste mundo, ele te persegui, te maltrata e te mata.

     E o que dizer da ausência do marido? Como não compara-lá com a ausência de Cristo no mundo após sua ascensão. Uma coisa é certa: nesse relato de Provérbios, somente o marido é inocente em sua conduta. Pois foi exatamente assim que Cristo morreu por nós, inocente e imaculado, mas ressuscitou e subiu aos céus, não em fraqueza mas em poder. E certamente voltará em tempo oportuno. E todos aqueles que vivem como aquele tolo, seduzidos pelo mundo dizendo: "Onde está a promessa da sua vinda?" (2Pe 3.4) "Ele não está aqui, venha e vamos viver de forma dissoluta, vamos satisfazer os prazeres porque este é o sentido da vida. Não há perigo não haverá ajustes de contas pelos nossos atos", e somos atraídos por essa voz. Mas será que não há perigo em vivermos dessa maneira?
"Seduziu-o com as suas muitas palavras, com as lisonjas dos seus lábios o arrastou. E ele num instante a segue, como o boi que vai ao matadouro; como o cervo que corre para rede, até que a flecha lhe atravesse o coração; como a ave que se apressa para o laço, sem saber que isto lhe custará a vida." (7.21-23)
     Podemos até pensar que não há perigo nesta vida adultera, mas ele finaliza comparando aqueles que seguem por esse caminho como um boi a caminho do matadouro, como cervo que corre para rede ou a ave que se apressa para a armadilha. Nem o boi, nem o cervo, nem ave e nem o adultero compreende que esse caminho lhe custará a vida. Certamente essa advertência é propícia a nós hoje, pois segundo Cristo o adultério não é um perigo iminente somente para os casados, mas sim um mal que já começa nos olhos e no coração de qualquer um, expandindo assim a interpretação do sétimo mandamento e tornando igualmente abrangente o número daqueles que o quebram (Mt 5.27,28). Nós vivemos em tempos em que o acesso a pornografia se tornou tão fácil quanto o acesso a eletricidade, e as mulheres abandonaram a castidade na sua forma de vestir, somos presas vulneráveis em tempos modernos, tanto quanto foram aquele boi, cervo ou ave. É necessário que haja um verdadeiro arrependimento para não sermos pegos de surpresa pelo Senhor, que certamente há de voltar (1Ts 5.4-11).

A Graça e a Paz de Cristo a todos os que o amam.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

"Se Deus é por nós, quem será contra nós?", mas e se Deus for contra nós?

Romanos 8.31 tem se tornado o lema de muitas igrejas nos dias de hoje. Temos nos apegado a esses versos como um náufrago abraça uma boia salva-vidas. Chegamos ao ponto de fazer desses versos o alicerce principal de nossa teologia, transformando ele num imenso Titanic ao qual depositamos nossa total confiança. Por um lado, não há nada de errado nisso, tanto que Paulo chega a explodir em alegria e segurança de sua salvação. Mas por outro lado, se navegarmos por lugares sombrios, esse transatlântico pode se deparar com um imenso iceberg. Acredito que um desses iceberg seja Jeremias 21.5, quando Deus responde a Israel da seguinte maneira:
"Pelejarei eu mesmo contra vós outros com braço estendido e mão poderosa, com ira, com indignação e grande furor."
Como se pode ver, a grande questão nesse verso não é "se Deus é por nós quem será contra nós?", mas sim, e se Deus for contra nós? Nesse caso quem será por nós diante do todo-poderoso? Esse verso de Jeremias é somente a ponta do iceberg, quero convidar você, caro leitor, a olhar mais profundo para o restante do capitulo.

Comecemos pelo contexto histórico. Jeremias foi o último profeta de uma Jerusalém ainda livre, e foi também testemunha ocular da invasão babilônica e da destruição da cidade santa. Ele é nos dias de hoje denominado de profeta chorão, mas é injusto, ao meu ver, esse cognome. Pelo menos da maneira que alguns o utilizam, colocando ele como alguém sem controle emocional. Uma pessoa que presencia, mesmo após tanto advertir, a destruição e sofrimento de seu povo, de sua família e amigos, com certeza teria a vida marcada por lamentações. Além do mais, ele tentou alertar os seus, mas foi rejeitado, humilhado e até espancado, nos fazendo lembrar de um Nazareno tão peculiar que surgiria séculos mais tarde. O contexto aqui é de uma iminente destruição vindo a Jerusalém.

A ignorância do rei Zedequias
"Palavra que veio a Jeremias da parte do SENHOR, quando o rei Zedequias lhe enviou Pasur, filho de Malquias, e o sacerdote Sofonias, filho de Maaseias, dizendo: Pergunta agora por nós ao SENHOR, por que Nabucodonosor, rei da Babilônia, guerreia contra nós; bem pode ser que o SENHOR nos trate segundo todas as suas maravilhas e o faça retirar-se de nós."   (Jr 21.1,2)
Aparentemente o rei Zedequias tinha o hábito de consultar a Deus por meio do profeta; obviamente, não havia nele o hábito de obedecer a vontade do Deus de Israel (Jr 38.15). A Babilônia invadiu Jerusalém na época do reinado de Joaquim (2Rs 24.10), Nabucodonosor levou este cativo para Babilônia e toda sua família da realeza, e em lugar dele, coloca Zedequias como rei em Judá e Jerusalém. Passados alguns anos Zedequias se rebela contra a Babilônia, o que ocasiona a fúria de Nabucodonosor para vir a Jerusalém e sitia-la.

Nesses dois primeiros versos podemos constatar claramente a total ignorância de Zedequias, principalmente em relação a providência divina. A pergunta dele revela que há esperança de que Israel, já abatido fisicamente e morto espiritualmente, venha triunfar sobre o poderoso exército Babilônico. Certamente a ignorância de Zedequias esta relacionada com o que Deus esta fazendo no meio do povo, e não com aquilo que Ele fez. Ele tem esperança de que Deus novamente vai livrar o povo e pelejar em favor de Israel, ele tem esperança "que o Senhor nos trate segundo todas as suas maravilhas". A palavra hebraica pele'(maravilhas) tem o significado de "milagre" ou "prodígio", algo extraordinário, inexplicável. O conhecimento que Zedequias tem de Deus está baseado no poder que há em suas mãos, mas é totalmente ignorante de quem Deus é.

Foi exatamente isso que aconteceu com Jesus após a multiplicação dos pães. A multidão seguiu Jesus e seus discípulos, atravessaram terra e mar para caça-los, mas quando os encontra, o Senhor os repreende: "Em verdade, em verdade vos digo: vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos fartastes." (Jo 6.26). O sinais que testificavam que Ele era o Messias foi ignorado completamente por conta da necessidade suprida. Esse é o motivo da busca frenética daquela multidão: a satisfação das necessidades.

É triste como a historia de Zedequias também reverbera em nossos dias, milhares e milhares de pessoas que se ajuntam porque creem que existe um Deus que faz prodígios, milagres, curas e maravilhas. Pessoas que tem fé para serem curadas, mas não possuem sequer uma pequena quantia de conhecimento de quem Deus é, e de seus atributos eternos e imutáveis. Uma fé sem a razão e o conhecimento, é uma fé ineficaz; imagine por um momento se a fé de Abraão ao ser provado para sacrificar o próprio filho estivesse sem o conhecimento dos atributos de Deus, se Abraão não tivesse certeza de que Deus é fiel e imutável em suas promessas, teria levado seu filho até o cume do monte? O resultado de uma fé sem a razão é o mesmo ocorrido com Zedequias, buscam a Deus somente quando há necessidade em suas vidas miseráveis. O problema quando buscamos a Deus só em meio as necessidades é que a resposta Dele pode ser contra nós e não a favor.

A resposta de Deus para Zedequias.
"Então, Jeremias lhes disse: Assim direis a Zedequias: Assim diz o SENHOR, o Deus de Israel: Eis que farei retroceder as armas de guerra que estão nas vossas mãos, com que vós pelejais fora dos muros contra o rei da Babilônia e contra os caldeus, que vos oprimem; tais armas, eu as ajuntarei no meio desta cidade. Pelejarei eu mesmo contra vós outros com braço estendido e mão poderosa, com ira, com indignação e grande furor. Ferirei os habitantes desta cidade, tanto os homens quanto os animais; de grande pestilência morrerão. Depois disto, diz o SENHOR, entregarei Zedequias, rei de Judá, e seus servos, e o povo, e quantos desta cidade restarem da pestilência, da espada, da fome e na mão de Nabucodonosor, rei da Babilônia, na de seus inimigos e na dos que procuram tirar-lhes a vida; feri-los-á a fio de espada; não os poupará, não se compadecerá, nem terá misericórdia."   (Jr 21.3-7) 
Zedequias consulta Jeremias para saber se Deus era "por nós", e a resposta que recebe é "pelejarei eu mesmo contra vós". Tenho certeza que na sua ignorância o rei não esperava por isso. Em um contraste com o famoso relato do reinado de Josafá quando Deus diz: "a peleja não é vossa, mas de Deus", "não temais, nem vos assusteis... porque o SENHOR é convosco." (2Cr 20.15-17). Aqui Deus é bem claro em sua resposta: "Sou eu que estou contra Israel". É possível isso? Deus ser contra seu próprio povo?

Posso prever varias objeções acerca desse argumento, principalmente da nociva teologia moderna que enfatiza demasiadamente o amor de Deus em detrimento ao demais atributos. A teologia moderna diz: "Sim Deus é justo, santo, soberano e imutável, mas acima de tudo isso Deus é amor, ainda que seja preciso ele abrir mão da sua justiça, santidade, soberania e imutabilidade em favor desse amor". Segundo essa cosmovisão cristã, Deus faz tudo baseado primariamente no seu amor, os outros atributos são secundários e as vezes irrelevantes. O problema é os frutos desse tipo de teologia; por exemplo, segundo esse pensamento, as coisas ruins que ocorrem na humanidade só podem ser originados pelo mal, e seu príncipe, satanás. Seguir por esse caminho é entrar num terrível dualismo e morte da soberania e providência de Deus no mundo, é um caminho perigoso para a vida cristã saudável.

Em relação a tudo isso surge a pergunta: "Deus ser contra o seu povo é manchar o seu atributo do amor"? De maneira nenhuma, muito pelo contrário, no contexto desta passagem podemos ver que há dois atributos de Deus em manifestação clara, a fidelidade e o amor. Fidelidade ao pacto feito com Israel, pois esses versos nada mais são, senão o cumprimento de Deuteronômio 4.25-27:
"Quando, pois, gerardes filhos e filhos de filhos, e vos envelhecerdes na terra, e vos corromperdes, e fizerdes alguma imagem esculpida, semelhança de alguma coisa, e fizerdes mal aos olhos do SENHOR, teu Deus, para o provocar à ira, hoje, tomo por testemunhas contra vós outros o céu e a terra, com efeito, perecereis, imediatamente, da terra a qual, passado o Jordão, ides possuir; não prolongareis os vossos dias nela; antes, sereis de todo destruídos. O SENHOR vos espalhará entre os povos, e restareis poucos em número entre as gentes aonde o SENHOR vos conduzirá."(Confira também Levítico 26.23-26):
 E amor ao mostrar que seu povo não está sem disciplina conforme o autor de Hebreus citando Provérbios enfatiza acerca do atributo do amor de Deus:
"Filho meu, não menospreze a correção que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és reprovado; porque o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe. É para disciplina que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que filho há que o pai não corrige"?  (Hb 12.5-7)
Podemos ver tanto a fidelidade quanto o amor de Deus na continuação dos versos de Deuteronômio 4
"então, o SENHOR, teu Deus, não te desamparará, porquanto é Deus misericordioso, nem te destruirá, nem se esquecerá da aliança que jurou a teus pais." (4.31)
Deus tem todo o direito de ser contra o seu povo. Como um Criador que faz o que quer com seu vaso de barro, como um Santo que não suporta o pecado, como o Justo que não deixa impune o mesmo pecado, como aquele que é Fiel e Poderoso para cumprir o que prometerá, e também como um Pai que disciplina seu filho que ama. Nenhum atributo é diminuído, Ele continua sendo completo e perfeito, mesmo quando não compreendemos o que Ele faz.

Zedequias não compreendeu que Nabucodonosor era um instrumento nas mãos de Deus, lutar contra ele era lutar contra Deus. O que fazer nessa situação?

Os dois caminhos: Da obediência para a vida e da desobediência para a morte.

Diante de tal situação Deus coloca a frente do povo dois caminhos a trilhar:
"A este povo dirás: Assim diz o SENHOR: Eis que ponho diante de vós o caminho da vida e o caminho da morte. O que ficar nesta cidade há de morrer à espada, ou à fome, ou de peste; mas o que sair e render-se aos caldeus, que vos cercam, viverá, e a vida lhe será como despojo. Pois voltei o rosto contra esta cidade, para mal e não para bem, diz o SENHOR; ela será entregue nas mãos do rei da Babilônia, e este a queimará."  (Jr 21.8-10)
De modo bem simples, podemos chegar a seguinte conclusão: render-se a vontade do Soberano resultava em vida, ao passo que resistir a Ele era caminhar a passos largos para a destruição. Certamente, independente de todas as armas que utilizamos, resistir a vontade Dele é esmurrar o próprio vento, é inútil e danoso a vida. A única solução possível é render-se como vencidos por Deus. Talvez sua objeção aqui seja: "Isso que você pede não é fácil, afinal de contas você está dizendo que não devemos resistir a vontade de Deus, sendo que essa vontade consiste em render-se ao nosso inimigo e viver como despojo de guerra". É uma objeção válida, como aceitar essa vida de cativeiro em terra estranha? Segundo o profeta Ezequiel isso era necessário para que as nações e principalmente Israel soubessem "que eu sou o SENHOR" (Ez 30.8,19,25-26; 32.15; 35.9,15; 38.23; 39.6). O tempo provou que a disciplina de Deus fez com que Israel abandonasse a idolatria e se voltasse para a sua palavra. Setenta anos de cativeiro foram necessários para que fossem "participantes da sua santidade" (Hb 12.10).

Ainda que não possamos enxergar a finalidade de sua vontade, precisamos nos render a Ele, com as nossas armas jogadas ao chão, sabedores de que a nossa desobediência tem nos levado a caminhos de morte e não de vida. Deus é contra o seu povo sim, mas não para destruição, como aconteceu quando Deus foi contra as demais nações. Aonde está o império Babilônico hoje? O que dizer dos gregos e romanos? Em contrapartida o povo de Deus, o verdadeiro Israel, que é a Igreja, permanece firme, apesar de perseguições e tribulações, que segundo nosso estudo vem na maioria das vezes da parte do próprio Deus da Igreja. Render-se a Ele é seguir caminho de vida.

Graças a Deus que em nosso meio, andou Aquele que foi perfeito em sua obediência com o Criador, em contraste conosco, que desde o Éden anda em desobediência. Pela obediência Dele, Jesus Cristo, o Salvador, é que trilhamos o caminho da vida:
"Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos."  (Rm 5.19)
Pois a ira de Deus que era contra nós, foi depositada completamente nele, nenhuma gota a menos da sua taça fora desperdiçado.
"Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar, quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do SENHOR prosperará nas suas mãos."  (Is 53.10) 
A pergunta feita no inicio desta postagem foi: E se Deus for contra nós? Quem será por nós diante do Todo-Poderoso? A resposta se encontra nesse Servo Sofredor que se pós entre nós e a ira de Deus que nos era devida.

 A Graça e a Paz de Cristo sobre todos os que O amam.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Deus é negligente em certas ocasiões?

Para aqueles com uma cosmovisão baseada nas Escrituras Sagradas, a pergunta do título parece ser irracional ao primeiro contato visual. Talvez esse tenha sido o real motivo de você, leitor, estar aqui; para desvendar essa falácia. Mas, precisamos compreender que vivemos em um mundo com uma visão do cosmos que na maioria das vezes não é fundamentado pela palavra viva de Deus. E não somente isso, como há também uma cultura evangélica moderna que, infelizmente, não está pronta, nem madura para responder essa questão. É certo que, em nossa vida cristã encontraremos céticos e fracos na fé com questões semelhantes a essa. Acredito que devemos estar preparados para tais oportunidades.

Essa é uma pergunta que pode surgir em meio ao nosso cotidiano, e que está intrinsecamente ligada ao conhecimento básico que alguém possui de Deus. Por exemplo, uma pessoa que enxerga e conhece a Deus com aquele nocivo pensamento de "eu faço e Deus me retribui" irá se defrontar em algum momento de sua vida que não é esse o padrão de Deus. Chegará a hora que campanha de jejum e oração não trará a cura ou a "benção" almejada, e é nesse momento que essa pergunta virá para assombrá-lo: "Porque essa doença continua corroendo meu filho? Eu não entendo, eu oro, jejuo e nada", "Porque meu esposo não para de beber, depois do tanto que eu faço pela igreja". Pode parecer um argumento medíocre, mas a realidade do evangelicalismo em nosso país não é menos medíocre que o próprio argumento.

Agora, para aqueles que são céticos, é uma questão que nos leva ao antigo argumento da teodicéia, ou seja, "se Deus é bom e todo-poderoso, porque existe o mal no mundo?". Isso porque o objetivo final desses é eliminar Deus da cultura contemporânea. Então, quando coisas ruins acontecem com pessoas boas, a pergunta é a mesma que foi feita ao salmista: "O teu Deus, onde está?" (Sl 42.3). "Aonde estava ele durante as guerras? E quanto a todas as mulheres que são abusadas diariamente, aonde ele está? Crianças abandonadas e Ele em pleno silêncio?". Como lidar com tais indagações? Pretendo tratá-las no final.

Para mim (que já fez parte dos dois grupos, e as vezes tende a vacilar entre eles), essa questão assaltou-me os pensamentos em meio a leitura do livro de Números, na excêntrica história de Balaão. A palavra "Números" não descreve tanto o conteúdo deste livro como a palavra original que era usada pelos antigos judeus: "No deserto", baseado no primeiro verso. O livro relata a peregrinação (no deserto) de um povo liberto da escravidão rumo a uma terra própria; tudo isso após Israel passar cerca de um ano no Sinai, recebendo a antiga Aliança e a Lei e seus códigos. Apesar de ser registrado diversos censos, ou seja, a contagem numérica do povo, acredito que "no deserto" seja um título mais apropriado. Em um espaço de dez capítulos (10.11-20.21), é o suficiente para abarcar um período de 38 anos dos 40 passados no deserto. O motivo de se passar tanto tempo no deserto o próprio livro explica, "Neste deserto, cairá o vosso cadáver..." (14.29), é o juízo santo de Deus. Obviamente não sem motivo; o povo desde sua partida do Egito, constantemente permaneceu rebelde contra seu Salvador. No deserto de Sim com a falta de comida (Ex 16.1-3), em Refidim com a falta de água (Ex 17.1-3), no monte Sinai com a ausência de um líder (Ex 32.1), no Tabernáculo com fogo estranho (Lv 10.1,2), ao sair do Sinai com fastio do Maná enviado do céu (Nm 11.1-6), em Hazerote com dois lideres insatisfeitos (Nm 12.1-3), no deserto de Parã agora com dez lideres influenciando mal o povo (Nm 13.25-14.12). O resultado culmina no inevitável juízo de Deus. Como disse Victor P. Hamilton:
"A história mais uma vez reflete um tema que predomina em Números: o pecado não pode ser negligenciado" (Manual do Pentateuco, p. 393)
Mas então chegamos a introdução de dois personagens bizarros no relato bíblico de Números: Balaque e Balaão (Cap. 22-24). Até agora fomos informados pelo ponto de vista de dentro do povo de Israel, mas no capitulo 22 a perspectiva é daqueles que estão de fora, "viu, pois, Balaque, filho de Zipor, tudo o que Israel fizera aos amorreus" (22.2). Israel nesses três capítulos sai de seu papel de protagonista na historia da redenção para ser figurante. Balaão, como um profeta mercadejante que era, é contratado por Balaque para amaldiçoar Israel, com a intenção de enfraquecer o seu poderio militar e ter uma chance de vitória. Por três vezes Balaão tentou cumprir seu contrato financeiro, porém foi impedido pelo Espírito do Senhor, que em vez de amaldiçoar o povo, abençoou. Eu quero chamar a sua atenção para um verso específico em meio ao segundo oráculo de Balaão:
"Não viu iniquidade em Jacó, nem contemplou desventura em Israel; o SENHOR, seu Deus, está com ele, no meio dele se ouvem aclamações ao seu Rei" (23.21)
Como é possível isso? Você percebe a força por trás dessas palavras? "Não viu iniquidade"? "Não contemplou desventura"? Como assim? Deus não estava presente no deserto de Sim? E em Refedim? E o que dizer do Sinai, Deus não estava lá? O texto deixa claro que estava. Mas então ele fez vista grossa nessas ocasiões, ignorando o pecado do povo? É certo que não, pois cada um deles teve a sua devida consequência por parte do próprio Deus. Então como pode afirmar que não viu iniquidade? Alguns podem argumentar que por ser uma benção profética, estaria relacionado ao futuro e não ao passado, essa é a interpretação da versão NTLH (Nova Tradução na Linguagem de Hoje): "Vejo que no futuro do povo de Israel não há desgraça nem sofrimentos". Porém não ajuda muito tentar ir por esse caminho, afinal de contas no capitulo 25 o povo já se prostitui novamente com outros deuses, um pequeno prefácio do futuro tenebroso de Israel em meio a prostituição e idolatria.

O dilema fica ainda mais intrigante quando vemos a concordância da palavra hebraica "aven" (iniquidade) no livro de salmos, que não economiza o uso dela. Ela é usada em diversos contextos em salmos, mas talvez o principal deles é em meio ao contexto de mentira, engano e fraude (5.5, 6; 7.14; 10.7; 28.3; 59.5; 101.7, 8; 141.9). Veja por exemplo o salmo 7.14 que utiliza as duas palavras usadas em Números 23.21, "aven" (iniquidade) e "Ìamal" (desventura/malícia):
"Eis que o ímpio está com dores de iniquidade (aven); concebeu a malícia (Ìamal) e dá à luz a mentira" (Sl 7.14)
Pelo salmo percebemos que a iniquidade é a concepção, e a mentira o resultado dela. Junte tudo isso com o fato de que Deus parece fazer um paradoxo com as palavras "iniquidade" e "Jacó"; paradoxo porque a própria palavra Jacó tem um sentido de enganador, e não só a palavra como o sujeito que leva o nome no registro bíblico. Seja o patriarca Jacó ou sua numerosa prole (Israel), tanto um como outro tem a iniquidade manchando seu registro histórico, todos conseguimos ver isso, exceto Deus. Como resolver esse dilema?

Resolvemos esse dilema com a seguinte afirmação: Deus nunca foi negligente com o pecado de Israel! Basta você olhar para o livro de Levítico e para o tabernáculo, para perceber que o fato de Deus não ver iniquidade está ligado com a expiação que era feita anualmente pelos sacerdotes, havia sempre um inocente recebendo o preço do pecado no lugar do povo, no caso do antigo Israel era sempre um animal perfeito e sem mácula nenhuma. Desde a primeira páscoa celebrada ainda no Egito, o sangue era o motivo da ira de Deus passar por cima e não dentro de Israel, não por negligência mas por substituição. O inocente pelo culpado (Ex 12.5-7, Lv 16). Da perspectiva de Israel o pecado é tratado com disciplina, mas quando este está diante dos acusadores do povo de Deus, o pecado não é visto, pois alguém já recebeu a devida condenação. É o mesmo caso de Jó, diante do acusador Deus disse: "Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal" (Jó 1.8). Mas ao se dirigir a Jó nos últimos capítulos as palavras de Deus para ele são de disciplina e não de aprovação.

Acredito que este pode ser um ponto de partida para tentar responder questões complexas como as que expus no começo desta postagem. Do ponto de vista daqueles que perecem e são céticos, Deus é negligente em algumas ocasiões, pois não compreendem que, mediante a sua soberania, há um dia reservado para o grande ajustes de contas, e a pergunta não deve ser: "Se Deus é bom e todo-poderoso, porque existe o mal no mundo?" mas sim "Existe algo de mal dentro de mim?", se sim, deveria tomar cuidado em querer eliminar o mal do mundo desfazendo de um Deus bom e todo-poderoso. É como o salmista que labutou em pensamentos com essas terríveis questões, como "porque os perversos prosperam?", mas que chega a seguinte conclusão:
"Em só refletir para compreender isso, achei mui pesada tarefa para mim, até que entrei no santuário de Deus e atinei com o fim deles. Tu certamente os pões em lugares escorregadios e os fazes cair na destruição" (Sl 73.16,17)

Agora da perspectiva daqueles que depositam sua total confiança em Deus como redentor de um mundo mal e tenebroso as seguintes palavras são de indizível consolo:
"Porque Cristo não entrou em santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para comparecer, agora, por nós, diante de Deus; nem ainda para se oferecer a si mesmo muitas vezes, como o sumo sacerdote cada ano entra no Santo dos Santos com sangue alheio. Ora, neste caso, seria necessário que ele tivesse sofrido muitas vezes desde a fundação do mundo; agora, porém, ao se cumprirem os tempos, se manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado. E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo, assim também Cristo, tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação." (Hb 9.24-28)
 A Graça e a Paz de Cristo sobre todos os que O amam.

sábado, 28 de janeiro de 2017

Porque Esdras 7-10?

 Achei oportuno como minha primeira publicação do site, dar um esclarecimento do nome de Esdras 7-10. Desde já deixo claro que a intenção deste modesto autor não é fazer alarde perante o vergonhoso evangelicalismo moderno, até porque o referido autor se encontra entre os "teólogos" anônimos que estão espalhados pelo mundo. Digo teólogo, não no sentido docente da palavra mas no sentido discente, ou seja, ainda me encontro entre os alunos sentados em uma carteira, olhando para a lousa rabiscada, onde vez após vez passa-se por professores diferentes, tais como Lutero, Calvino, Agostinho, Owen, Baxter, Edwards, Lloyd-Jones, Packer, Tozer, Pink, Sproul, etc... Homens diversos, patriarcas, reformadores, puritanos, pastores, e acima de tudo servos, não da teologia, mas do Deus da teologia. Servos da verdade em meio a mentira de um coração enganoso que é imperativo do ser humano. "Seja Deus verdadeiro, e mentiroso, todo homem" (Rm 3.4). Fazemos teologia com a intenção de declarar guerra a esse cruel imperador inato ao homem.

Porém, o autor deste blog concorda com as palavras de Alister McGrath:
"De certa forma, todos somos teólogos, na medida em (que) todos queremos falar de Deus. Só que não é tão simples assim". (Teologia para amadores, p.7)
 Acredito que o fator principal da atual vergonha evangélica protestante é a teologia fraca e (contrariando a própria etimologia da palavra) antropológica como fundamento na maioria das denominações. Pregadores, pastores, evangelistas, a semelhança dos sacerdotes de um Israel ainda monárquico, desprezam o verdadeiro conhecimento de Deus. Cabe aqui as palavras de Deus proferida pelo profeta Isaías acerca de Judá e Jerusalém (v.1):
"Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim. O boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende." (Is 1.2,3)
Oséias, contemporâneo de Isaías, adverte Israel, o reino do norte do mesmo pecado, a falta de conhecimento:
"Ouvi a palavra do SENHOR, vós, filhos de Israel, porque o SENHOR tem uma contenda com os habitantes da terra, porque nela não há verdade, nem amor, nem conhecimento de Deus... Todavia ninguém contenda, ninguém repreenda; porque o teu povo é como os sacerdotes aos quais acusa...O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento. Porque tu, sacerdote, rejeitaste o conhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas sacerdote diante de mim; visto que te esqueceste da lei do teu Deus, também eu me esquecerei de teus filhos." (Os 4.1,4,6)
Oséias expõe o pecado de Israel dizendo "não há verdade, nem amor" e isso porque não há conhecimento de Deus, a fonte de toda verdade e do mais puro amor. Mas a causa matriz da ignorância do povo, Oséias diz, é "porque o teu povo é como os sacerdotes" e visto que os sacerdotes rejeitaram o conhecimento de Deus, isso reflete no povo ao qual servem. Um é o espelho, o outro o simples reflexo. A negligencia de um resulta na ignorância do outro. Infelizmente muitos em nossos dias acreditam firmemente exercerem a função de sacerdote sobre o povo de Deus, mas que a resposta de Deus diante de alguns é "rejeitaste o conhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas sacerdotes diante de mim". Olhe por exemplo para o primeiro século. Quantos fariseus, quantos saduceus, escribas e mestres da lei, tão numerosos e mesmo assim Jesus olha para a multidão "como ovelhas que não tem pastor" (Mc 6.34); tantos deles, porem todos rejeitados porque negligenciaram o verdadeiro conhecimento. Seria diferente nos dias atuais?

Agora veja o contraste com um peregrino, vindo do exílio na Babilônia para Jerusalém:
Passadas estas coisas no reinado de Artaxerxes rei da Pérsia, Esdras, filho de Seraías, ...filho de Fineias, filho de Eleazar, filho de Arão, o sumo sacerdote, este Esdras subiu da Babilônia. Ele era escriba versado na Lei de Moisés, dada pelo SENHOR, Deus de Israel; e, segundo a boa mão do SENHOR, seu Deus, que estava sobre ele, o rei lhe concedeu tudo quanto lhe pedira... Porque Esdras tinha disposto o coração para buscar a Lei do SENHOR, e para a cumprir, e para ensinar em Israel os seus estatutos e os seus juízos." (Ed 7.1,5-6,10)
Já se passara por um período de aproximadamente meio século desde que a primeira caravana viera para reconstruir o templo com Zorobabel. O contexto posterior a esta passagem nos revela que depressa o povo se corrompeu com os habitantes da terra, "o povo de Israel, e os sacerdotes, e os levitas não se separaram dos povos de outras terras com as suas abominações... se misturou a linhagem santa com os povos dessas terras" (9.1,2), uma reverberação de Gênesis 6 e do período anterior ao exílio de Israel e Judá, o contexto de Isaías e Oséias. Em ambas o resultado foi o juízo de Deus, a manifestação da sua ira santa e o cumprimento de sua palavra (Dt 7.1-4). Israel está novamente a passos largos rumo a destruição.

O templo já estava reerguido, Jerusalém se tornara novamente capital, e Israel podia se orgulhar de seu ressurgimento (nós sabemos o motivo desse ressurgimento, Is 44.21-28, Ed 1.1-4). Porém o povo ainda se encontra em trevas, ou seja, o coração do ser humano não mudou sequer um milimetro, seja para esquerda ou para direita, desde aquele dia sombrio no Éden (Gn 3). Mas a esperança se encontra no texto que estamos analisando, e eu queria destacar três pontos principais dele. Primeiro, os primeiros versos quer deixar bem claro quem subiu da Babilônia; "filho de Arão, o sumo sacerdote, este Esdras subiu da Babilônia". Esdras tinha pela sua linhagem genealógica o direito do sacerdócio santo entre o povo de Israel. Se compararmos passagens como 6.20 com 9.1, veremos que houve uma corrupção entre o sacerdócio no período de tempo entre a páscoa celebrada no capitulo seis e a chegada de Esdras no sete. Veja por você mesmo:
"porque os sacerdotes e os levitas se tinham purificado como se fossem um só homem, e todos estavam limpos... Assim, comeram a Páscoa os filhos de Israel que tinham voltado do exílio e todos os que, unindo-se a eles, se haviam separado da imundícia dos gentios da terra, para buscarem o SENHOR, Deus de Israel" (Ed 6.20,21)
A cena alguns anos depois é outra:
"O povo de Israel, e os sacerdotes, e os levitas não se separaram dos povos de outras terras com as suas abominações... assim, se misturou a linhagem santa com os povos dessas terras." (Ed 9.1,2) 
Segundo, ele não era apenas um sacerdote, mas o texto deixa claro que, diferente dos seus contemporâneos e dos sacerdotes do tempo de Isaías e Oséias, Esdras não foi rejeitado por Deus: "Ele era escriba versado na Lei de Moisés, dada pelo SENHOR, Deus de Israel; e segundo a boa mão do SENHOR, seu Deus, que estava sobre ele, o rei lhe concedeu tudo quanto lhe pedira". Certamente o ser versado na Lei de Moisés, implica que Esdras não rejeitou o conhecimento de Deus. Isso fica mais claro quando vemos a oração de confissão dele ao saber das noticias do povo e dos sacerdotes no capitulo nove. Ele tem conhecimento de um Deus santo que não suporta o pecado e a iniquidade (9.6); um Deus que exerce juízo sobre o pecado (v.7); mas ao mesmo tempo um Deus gracioso com o seu povo dando vida em meio a servidão (v.8); um Deus também de misericórdia para restaurar o povo e diminuir o castigo em sua vara de justiça (v.9, 13); e um Deus que é fiel a sua palavra, mesmo que isso implique em disciplina ao seu povo (v.11-12). Por não rejeitar o verdadeiro conhecimento, Deus não o rejeita como sacerdote.

Terceiro, ele havia "disposto o coração" para buscar, cumprir e para ensinar em Israel os seus estatutos e os seus juízos. Deve-se lembrar que a palavra coração na cultura judaica implica em todo o ser do homem, sua mente, vontade, alma, raciocínio, inteligencia, seu corpo, tudo o que lhe compõe. Conhecê-lo de todo coração é ama-lo com todas as forças e entendimento. É nesse ponto que Esdras entra no mesmo grupo de todos os reformadores, puritanos e afins. Diligência no estudo da palavra, preocupação em seu cumprimento e aplicação prática, e a grande obra de ensinar a Igreja por meio da pregação, pois é o que ele faz atê o final deste livro.

Parece-me o cumprimento das palavras de um velho pregador: "O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer, nada há, pois, novo debaixo do sol" (Ec 1.9). Aconteceu com Josias, aconteceu com Esdras, assim como com Lutero. E diante do crescente número de reformados em o nosso país, pergunto: estaria acontecendo de novo? Espero que sim!

Esdras 7-10 é a trajetória de mais um reformador nesta grande História da redenção, e a minha oração caro leitor é que possamos pela graça que há em Cristo Jesus, sermos participantes dela, atê que Ele volte.
"Tem havido dias gloriosos e grandiosos do Evangelho nesta terra, mas eles serão nada em comparação àquilo que haverá no futuro" (James Renwick, 1688)

A Graça e a Paz de Cristo sobre todos os que O amam.