sábado, 4 de fevereiro de 2017

Deus é negligente em certas ocasiões?

Para aqueles com uma cosmovisão baseada nas Escrituras Sagradas, a pergunta do título parece ser irracional ao primeiro contato visual. Talvez esse tenha sido o real motivo de você, leitor, estar aqui; para desvendar essa falácia. Mas, precisamos compreender que vivemos em um mundo com uma visão do cosmos que na maioria das vezes não é fundamentado pela palavra viva de Deus. E não somente isso, como há também uma cultura evangélica moderna que, infelizmente, não está pronta, nem madura para responder essa questão. É certo que, em nossa vida cristã encontraremos céticos e fracos na fé com questões semelhantes a essa. Acredito que devemos estar preparados para tais oportunidades.

Essa é uma pergunta que pode surgir em meio ao nosso cotidiano, e que está intrinsecamente ligada ao conhecimento básico que alguém possui de Deus. Por exemplo, uma pessoa que enxerga e conhece a Deus com aquele nocivo pensamento de "eu faço e Deus me retribui" irá se defrontar em algum momento de sua vida que não é esse o padrão de Deus. Chegará a hora que campanha de jejum e oração não trará a cura ou a "benção" almejada, e é nesse momento que essa pergunta virá para assombrá-lo: "Porque essa doença continua corroendo meu filho? Eu não entendo, eu oro, jejuo e nada", "Porque meu esposo não para de beber, depois do tanto que eu faço pela igreja". Pode parecer um argumento medíocre, mas a realidade do evangelicalismo em nosso país não é menos medíocre que o próprio argumento.

Agora, para aqueles que são céticos, é uma questão que nos leva ao antigo argumento da teodicéia, ou seja, "se Deus é bom e todo-poderoso, porque existe o mal no mundo?". Isso porque o objetivo final desses é eliminar Deus da cultura contemporânea. Então, quando coisas ruins acontecem com pessoas boas, a pergunta é a mesma que foi feita ao salmista: "O teu Deus, onde está?" (Sl 42.3). "Aonde estava ele durante as guerras? E quanto a todas as mulheres que são abusadas diariamente, aonde ele está? Crianças abandonadas e Ele em pleno silêncio?". Como lidar com tais indagações? Pretendo tratá-las no final.

Para mim (que já fez parte dos dois grupos, e as vezes tende a vacilar entre eles), essa questão assaltou-me os pensamentos em meio a leitura do livro de Números, na excêntrica história de Balaão. A palavra "Números" não descreve tanto o conteúdo deste livro como a palavra original que era usada pelos antigos judeus: "No deserto", baseado no primeiro verso. O livro relata a peregrinação (no deserto) de um povo liberto da escravidão rumo a uma terra própria; tudo isso após Israel passar cerca de um ano no Sinai, recebendo a antiga Aliança e a Lei e seus códigos. Apesar de ser registrado diversos censos, ou seja, a contagem numérica do povo, acredito que "no deserto" seja um título mais apropriado. Em um espaço de dez capítulos (10.11-20.21), é o suficiente para abarcar um período de 38 anos dos 40 passados no deserto. O motivo de se passar tanto tempo no deserto o próprio livro explica, "Neste deserto, cairá o vosso cadáver..." (14.29), é o juízo santo de Deus. Obviamente não sem motivo; o povo desde sua partida do Egito, constantemente permaneceu rebelde contra seu Salvador. No deserto de Sim com a falta de comida (Ex 16.1-3), em Refidim com a falta de água (Ex 17.1-3), no monte Sinai com a ausência de um líder (Ex 32.1), no Tabernáculo com fogo estranho (Lv 10.1,2), ao sair do Sinai com fastio do Maná enviado do céu (Nm 11.1-6), em Hazerote com dois lideres insatisfeitos (Nm 12.1-3), no deserto de Parã agora com dez lideres influenciando mal o povo (Nm 13.25-14.12). O resultado culmina no inevitável juízo de Deus. Como disse Victor P. Hamilton:
"A história mais uma vez reflete um tema que predomina em Números: o pecado não pode ser negligenciado" (Manual do Pentateuco, p. 393)
Mas então chegamos a introdução de dois personagens bizarros no relato bíblico de Números: Balaque e Balaão (Cap. 22-24). Até agora fomos informados pelo ponto de vista de dentro do povo de Israel, mas no capitulo 22 a perspectiva é daqueles que estão de fora, "viu, pois, Balaque, filho de Zipor, tudo o que Israel fizera aos amorreus" (22.2). Israel nesses três capítulos sai de seu papel de protagonista na historia da redenção para ser figurante. Balaão, como um profeta mercadejante que era, é contratado por Balaque para amaldiçoar Israel, com a intenção de enfraquecer o seu poderio militar e ter uma chance de vitória. Por três vezes Balaão tentou cumprir seu contrato financeiro, porém foi impedido pelo Espírito do Senhor, que em vez de amaldiçoar o povo, abençoou. Eu quero chamar a sua atenção para um verso específico em meio ao segundo oráculo de Balaão:
"Não viu iniquidade em Jacó, nem contemplou desventura em Israel; o SENHOR, seu Deus, está com ele, no meio dele se ouvem aclamações ao seu Rei" (23.21)
Como é possível isso? Você percebe a força por trás dessas palavras? "Não viu iniquidade"? "Não contemplou desventura"? Como assim? Deus não estava presente no deserto de Sim? E em Refedim? E o que dizer do Sinai, Deus não estava lá? O texto deixa claro que estava. Mas então ele fez vista grossa nessas ocasiões, ignorando o pecado do povo? É certo que não, pois cada um deles teve a sua devida consequência por parte do próprio Deus. Então como pode afirmar que não viu iniquidade? Alguns podem argumentar que por ser uma benção profética, estaria relacionado ao futuro e não ao passado, essa é a interpretação da versão NTLH (Nova Tradução na Linguagem de Hoje): "Vejo que no futuro do povo de Israel não há desgraça nem sofrimentos". Porém não ajuda muito tentar ir por esse caminho, afinal de contas no capitulo 25 o povo já se prostitui novamente com outros deuses, um pequeno prefácio do futuro tenebroso de Israel em meio a prostituição e idolatria.

O dilema fica ainda mais intrigante quando vemos a concordância da palavra hebraica "aven" (iniquidade) no livro de salmos, que não economiza o uso dela. Ela é usada em diversos contextos em salmos, mas talvez o principal deles é em meio ao contexto de mentira, engano e fraude (5.5, 6; 7.14; 10.7; 28.3; 59.5; 101.7, 8; 141.9). Veja por exemplo o salmo 7.14 que utiliza as duas palavras usadas em Números 23.21, "aven" (iniquidade) e "Ìamal" (desventura/malícia):
"Eis que o ímpio está com dores de iniquidade (aven); concebeu a malícia (Ìamal) e dá à luz a mentira" (Sl 7.14)
Pelo salmo percebemos que a iniquidade é a concepção, e a mentira o resultado dela. Junte tudo isso com o fato de que Deus parece fazer um paradoxo com as palavras "iniquidade" e "Jacó"; paradoxo porque a própria palavra Jacó tem um sentido de enganador, e não só a palavra como o sujeito que leva o nome no registro bíblico. Seja o patriarca Jacó ou sua numerosa prole (Israel), tanto um como outro tem a iniquidade manchando seu registro histórico, todos conseguimos ver isso, exceto Deus. Como resolver esse dilema?

Resolvemos esse dilema com a seguinte afirmação: Deus nunca foi negligente com o pecado de Israel! Basta você olhar para o livro de Levítico e para o tabernáculo, para perceber que o fato de Deus não ver iniquidade está ligado com a expiação que era feita anualmente pelos sacerdotes, havia sempre um inocente recebendo o preço do pecado no lugar do povo, no caso do antigo Israel era sempre um animal perfeito e sem mácula nenhuma. Desde a primeira páscoa celebrada ainda no Egito, o sangue era o motivo da ira de Deus passar por cima e não dentro de Israel, não por negligência mas por substituição. O inocente pelo culpado (Ex 12.5-7, Lv 16). Da perspectiva de Israel o pecado é tratado com disciplina, mas quando este está diante dos acusadores do povo de Deus, o pecado não é visto, pois alguém já recebeu a devida condenação. É o mesmo caso de Jó, diante do acusador Deus disse: "Observaste o meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal" (Jó 1.8). Mas ao se dirigir a Jó nos últimos capítulos as palavras de Deus para ele são de disciplina e não de aprovação.

Acredito que este pode ser um ponto de partida para tentar responder questões complexas como as que expus no começo desta postagem. Do ponto de vista daqueles que perecem e são céticos, Deus é negligente em algumas ocasiões, pois não compreendem que, mediante a sua soberania, há um dia reservado para o grande ajustes de contas, e a pergunta não deve ser: "Se Deus é bom e todo-poderoso, porque existe o mal no mundo?" mas sim "Existe algo de mal dentro de mim?", se sim, deveria tomar cuidado em querer eliminar o mal do mundo desfazendo de um Deus bom e todo-poderoso. É como o salmista que labutou em pensamentos com essas terríveis questões, como "porque os perversos prosperam?", mas que chega a seguinte conclusão:
"Em só refletir para compreender isso, achei mui pesada tarefa para mim, até que entrei no santuário de Deus e atinei com o fim deles. Tu certamente os pões em lugares escorregadios e os fazes cair na destruição" (Sl 73.16,17)

Agora da perspectiva daqueles que depositam sua total confiança em Deus como redentor de um mundo mal e tenebroso as seguintes palavras são de indizível consolo:
"Porque Cristo não entrou em santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para comparecer, agora, por nós, diante de Deus; nem ainda para se oferecer a si mesmo muitas vezes, como o sumo sacerdote cada ano entra no Santo dos Santos com sangue alheio. Ora, neste caso, seria necessário que ele tivesse sofrido muitas vezes desde a fundação do mundo; agora, porém, ao se cumprirem os tempos, se manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado. E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo, assim também Cristo, tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o aguardam para a salvação." (Hb 9.24-28)
 A Graça e a Paz de Cristo sobre todos os que O amam.

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