quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

"Se Deus é por nós, quem será contra nós?", mas e se Deus for contra nós?

Romanos 8.31 tem se tornado o lema de muitas igrejas nos dias de hoje. Temos nos apegado a esses versos como um náufrago abraça uma boia salva-vidas. Chegamos ao ponto de fazer desses versos o alicerce principal de nossa teologia, transformando ele num imenso Titanic ao qual depositamos nossa total confiança. Por um lado, não há nada de errado nisso, tanto que Paulo chega a explodir em alegria e segurança de sua salvação. Mas por outro lado, se navegarmos por lugares sombrios, esse transatlântico pode se deparar com um imenso iceberg. Acredito que um desses iceberg seja Jeremias 21.5, quando Deus responde a Israel da seguinte maneira:
"Pelejarei eu mesmo contra vós outros com braço estendido e mão poderosa, com ira, com indignação e grande furor."
Como se pode ver, a grande questão nesse verso não é "se Deus é por nós quem será contra nós?", mas sim, e se Deus for contra nós? Nesse caso quem será por nós diante do todo-poderoso? Esse verso de Jeremias é somente a ponta do iceberg, quero convidar você, caro leitor, a olhar mais profundo para o restante do capitulo.

Comecemos pelo contexto histórico. Jeremias foi o último profeta de uma Jerusalém ainda livre, e foi também testemunha ocular da invasão babilônica e da destruição da cidade santa. Ele é nos dias de hoje denominado de profeta chorão, mas é injusto, ao meu ver, esse cognome. Pelo menos da maneira que alguns o utilizam, colocando ele como alguém sem controle emocional. Uma pessoa que presencia, mesmo após tanto advertir, a destruição e sofrimento de seu povo, de sua família e amigos, com certeza teria a vida marcada por lamentações. Além do mais, ele tentou alertar os seus, mas foi rejeitado, humilhado e até espancado, nos fazendo lembrar de um Nazareno tão peculiar que surgiria séculos mais tarde. O contexto aqui é de uma iminente destruição vindo a Jerusalém.

A ignorância do rei Zedequias
"Palavra que veio a Jeremias da parte do SENHOR, quando o rei Zedequias lhe enviou Pasur, filho de Malquias, e o sacerdote Sofonias, filho de Maaseias, dizendo: Pergunta agora por nós ao SENHOR, por que Nabucodonosor, rei da Babilônia, guerreia contra nós; bem pode ser que o SENHOR nos trate segundo todas as suas maravilhas e o faça retirar-se de nós."   (Jr 21.1,2)
Aparentemente o rei Zedequias tinha o hábito de consultar a Deus por meio do profeta; obviamente, não havia nele o hábito de obedecer a vontade do Deus de Israel (Jr 38.15). A Babilônia invadiu Jerusalém na época do reinado de Joaquim (2Rs 24.10), Nabucodonosor levou este cativo para Babilônia e toda sua família da realeza, e em lugar dele, coloca Zedequias como rei em Judá e Jerusalém. Passados alguns anos Zedequias se rebela contra a Babilônia, o que ocasiona a fúria de Nabucodonosor para vir a Jerusalém e sitia-la.

Nesses dois primeiros versos podemos constatar claramente a total ignorância de Zedequias, principalmente em relação a providência divina. A pergunta dele revela que há esperança de que Israel, já abatido fisicamente e morto espiritualmente, venha triunfar sobre o poderoso exército Babilônico. Certamente a ignorância de Zedequias esta relacionada com o que Deus esta fazendo no meio do povo, e não com aquilo que Ele fez. Ele tem esperança de que Deus novamente vai livrar o povo e pelejar em favor de Israel, ele tem esperança "que o Senhor nos trate segundo todas as suas maravilhas". A palavra hebraica pele'(maravilhas) tem o significado de "milagre" ou "prodígio", algo extraordinário, inexplicável. O conhecimento que Zedequias tem de Deus está baseado no poder que há em suas mãos, mas é totalmente ignorante de quem Deus é.

Foi exatamente isso que aconteceu com Jesus após a multiplicação dos pães. A multidão seguiu Jesus e seus discípulos, atravessaram terra e mar para caça-los, mas quando os encontra, o Senhor os repreende: "Em verdade, em verdade vos digo: vós me procurais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos fartastes." (Jo 6.26). O sinais que testificavam que Ele era o Messias foi ignorado completamente por conta da necessidade suprida. Esse é o motivo da busca frenética daquela multidão: a satisfação das necessidades.

É triste como a historia de Zedequias também reverbera em nossos dias, milhares e milhares de pessoas que se ajuntam porque creem que existe um Deus que faz prodígios, milagres, curas e maravilhas. Pessoas que tem fé para serem curadas, mas não possuem sequer uma pequena quantia de conhecimento de quem Deus é, e de seus atributos eternos e imutáveis. Uma fé sem a razão e o conhecimento, é uma fé ineficaz; imagine por um momento se a fé de Abraão ao ser provado para sacrificar o próprio filho estivesse sem o conhecimento dos atributos de Deus, se Abraão não tivesse certeza de que Deus é fiel e imutável em suas promessas, teria levado seu filho até o cume do monte? O resultado de uma fé sem a razão é o mesmo ocorrido com Zedequias, buscam a Deus somente quando há necessidade em suas vidas miseráveis. O problema quando buscamos a Deus só em meio as necessidades é que a resposta Dele pode ser contra nós e não a favor.

A resposta de Deus para Zedequias.
"Então, Jeremias lhes disse: Assim direis a Zedequias: Assim diz o SENHOR, o Deus de Israel: Eis que farei retroceder as armas de guerra que estão nas vossas mãos, com que vós pelejais fora dos muros contra o rei da Babilônia e contra os caldeus, que vos oprimem; tais armas, eu as ajuntarei no meio desta cidade. Pelejarei eu mesmo contra vós outros com braço estendido e mão poderosa, com ira, com indignação e grande furor. Ferirei os habitantes desta cidade, tanto os homens quanto os animais; de grande pestilência morrerão. Depois disto, diz o SENHOR, entregarei Zedequias, rei de Judá, e seus servos, e o povo, e quantos desta cidade restarem da pestilência, da espada, da fome e na mão de Nabucodonosor, rei da Babilônia, na de seus inimigos e na dos que procuram tirar-lhes a vida; feri-los-á a fio de espada; não os poupará, não se compadecerá, nem terá misericórdia."   (Jr 21.3-7) 
Zedequias consulta Jeremias para saber se Deus era "por nós", e a resposta que recebe é "pelejarei eu mesmo contra vós". Tenho certeza que na sua ignorância o rei não esperava por isso. Em um contraste com o famoso relato do reinado de Josafá quando Deus diz: "a peleja não é vossa, mas de Deus", "não temais, nem vos assusteis... porque o SENHOR é convosco." (2Cr 20.15-17). Aqui Deus é bem claro em sua resposta: "Sou eu que estou contra Israel". É possível isso? Deus ser contra seu próprio povo?

Posso prever varias objeções acerca desse argumento, principalmente da nociva teologia moderna que enfatiza demasiadamente o amor de Deus em detrimento ao demais atributos. A teologia moderna diz: "Sim Deus é justo, santo, soberano e imutável, mas acima de tudo isso Deus é amor, ainda que seja preciso ele abrir mão da sua justiça, santidade, soberania e imutabilidade em favor desse amor". Segundo essa cosmovisão cristã, Deus faz tudo baseado primariamente no seu amor, os outros atributos são secundários e as vezes irrelevantes. O problema é os frutos desse tipo de teologia; por exemplo, segundo esse pensamento, as coisas ruins que ocorrem na humanidade só podem ser originados pelo mal, e seu príncipe, satanás. Seguir por esse caminho é entrar num terrível dualismo e morte da soberania e providência de Deus no mundo, é um caminho perigoso para a vida cristã saudável.

Em relação a tudo isso surge a pergunta: "Deus ser contra o seu povo é manchar o seu atributo do amor"? De maneira nenhuma, muito pelo contrário, no contexto desta passagem podemos ver que há dois atributos de Deus em manifestação clara, a fidelidade e o amor. Fidelidade ao pacto feito com Israel, pois esses versos nada mais são, senão o cumprimento de Deuteronômio 4.25-27:
"Quando, pois, gerardes filhos e filhos de filhos, e vos envelhecerdes na terra, e vos corromperdes, e fizerdes alguma imagem esculpida, semelhança de alguma coisa, e fizerdes mal aos olhos do SENHOR, teu Deus, para o provocar à ira, hoje, tomo por testemunhas contra vós outros o céu e a terra, com efeito, perecereis, imediatamente, da terra a qual, passado o Jordão, ides possuir; não prolongareis os vossos dias nela; antes, sereis de todo destruídos. O SENHOR vos espalhará entre os povos, e restareis poucos em número entre as gentes aonde o SENHOR vos conduzirá."(Confira também Levítico 26.23-26):
 E amor ao mostrar que seu povo não está sem disciplina conforme o autor de Hebreus citando Provérbios enfatiza acerca do atributo do amor de Deus:
"Filho meu, não menospreze a correção que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és reprovado; porque o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe. É para disciplina que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que filho há que o pai não corrige"?  (Hb 12.5-7)
Podemos ver tanto a fidelidade quanto o amor de Deus na continuação dos versos de Deuteronômio 4
"então, o SENHOR, teu Deus, não te desamparará, porquanto é Deus misericordioso, nem te destruirá, nem se esquecerá da aliança que jurou a teus pais." (4.31)
Deus tem todo o direito de ser contra o seu povo. Como um Criador que faz o que quer com seu vaso de barro, como um Santo que não suporta o pecado, como o Justo que não deixa impune o mesmo pecado, como aquele que é Fiel e Poderoso para cumprir o que prometerá, e também como um Pai que disciplina seu filho que ama. Nenhum atributo é diminuído, Ele continua sendo completo e perfeito, mesmo quando não compreendemos o que Ele faz.

Zedequias não compreendeu que Nabucodonosor era um instrumento nas mãos de Deus, lutar contra ele era lutar contra Deus. O que fazer nessa situação?

Os dois caminhos: Da obediência para a vida e da desobediência para a morte.

Diante de tal situação Deus coloca a frente do povo dois caminhos a trilhar:
"A este povo dirás: Assim diz o SENHOR: Eis que ponho diante de vós o caminho da vida e o caminho da morte. O que ficar nesta cidade há de morrer à espada, ou à fome, ou de peste; mas o que sair e render-se aos caldeus, que vos cercam, viverá, e a vida lhe será como despojo. Pois voltei o rosto contra esta cidade, para mal e não para bem, diz o SENHOR; ela será entregue nas mãos do rei da Babilônia, e este a queimará."  (Jr 21.8-10)
De modo bem simples, podemos chegar a seguinte conclusão: render-se a vontade do Soberano resultava em vida, ao passo que resistir a Ele era caminhar a passos largos para a destruição. Certamente, independente de todas as armas que utilizamos, resistir a vontade Dele é esmurrar o próprio vento, é inútil e danoso a vida. A única solução possível é render-se como vencidos por Deus. Talvez sua objeção aqui seja: "Isso que você pede não é fácil, afinal de contas você está dizendo que não devemos resistir a vontade de Deus, sendo que essa vontade consiste em render-se ao nosso inimigo e viver como despojo de guerra". É uma objeção válida, como aceitar essa vida de cativeiro em terra estranha? Segundo o profeta Ezequiel isso era necessário para que as nações e principalmente Israel soubessem "que eu sou o SENHOR" (Ez 30.8,19,25-26; 32.15; 35.9,15; 38.23; 39.6). O tempo provou que a disciplina de Deus fez com que Israel abandonasse a idolatria e se voltasse para a sua palavra. Setenta anos de cativeiro foram necessários para que fossem "participantes da sua santidade" (Hb 12.10).

Ainda que não possamos enxergar a finalidade de sua vontade, precisamos nos render a Ele, com as nossas armas jogadas ao chão, sabedores de que a nossa desobediência tem nos levado a caminhos de morte e não de vida. Deus é contra o seu povo sim, mas não para destruição, como aconteceu quando Deus foi contra as demais nações. Aonde está o império Babilônico hoje? O que dizer dos gregos e romanos? Em contrapartida o povo de Deus, o verdadeiro Israel, que é a Igreja, permanece firme, apesar de perseguições e tribulações, que segundo nosso estudo vem na maioria das vezes da parte do próprio Deus da Igreja. Render-se a Ele é seguir caminho de vida.

Graças a Deus que em nosso meio, andou Aquele que foi perfeito em sua obediência com o Criador, em contraste conosco, que desde o Éden anda em desobediência. Pela obediência Dele, Jesus Cristo, o Salvador, é que trilhamos o caminho da vida:
"Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos."  (Rm 5.19)
Pois a ira de Deus que era contra nós, foi depositada completamente nele, nenhuma gota a menos da sua taça fora desperdiçado.
"Todavia, ao SENHOR agradou moê-lo, fazendo-o enfermar, quando der ele a sua alma como oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do SENHOR prosperará nas suas mãos."  (Is 53.10) 
A pergunta feita no inicio desta postagem foi: E se Deus for contra nós? Quem será por nós diante do Todo-Poderoso? A resposta se encontra nesse Servo Sofredor que se pós entre nós e a ira de Deus que nos era devida.

 A Graça e a Paz de Cristo sobre todos os que O amam.

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