quarta-feira, 22 de março de 2017

Seremos mais completos em Deus do que Adão e Eva foram no Éden.

     "A meditação sobre o futuro escatológico do povo de Deus é perda de tempo para cristãos que, ao invés de gastar tinta e pensamentos naquilo que é o porvir, deveria estar preocupado com o agora." Pode parecer fútil esse argumento para aqueles que estão no caminho da fé reformada, mas a triste realidade eclesiástica da pós-modernidade, pelo menos da grande maioria, é trilhar por um caminho semelhante a esse argumento. "A preocupação prioritária da Igreja", dizem, "deve ser transformar esse mundo sombrio em um Jardim do Éden que foi perdido". Porém, por trás deste pressuposto, está o esquecimento de que essa utopia não é o fim bíblico estabelecido por Deus a este mundo caído e seus habitantes. Certamente não era esse tipo de pensamento que Pedro tinha em mente ao escrever:
"Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas. Visto que todas essas coisas serão hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade." (2Pe 3.10,11)
Isaías também de maneira bem parecida diz:
"Eis que vem o Dia do Senhor, dia cruel, com ira e ardente furor, para converter a terra em assolação e dela destruir os pecadores. Porque as estrelas e as constelações dos céus não darão a sua luz; o sol, logo ao nascer, se escurecerá, e a lua não fará resplandecer a sua luz. Castigarei o mundo por causa da sua maldade e os perversos, por causa da sua iniquidade; farei cessar a arrogância dos atrevidos e abaterei a soberba dos violentos. Farei que os homens sejam mais escassos do que o ouro puro, mais raros do que o ouro de Ofir. Portanto, farei estremecer os céus; e a terra será sacudida do seu lugar, por causa da ira do Senhor dos Exércitos e por causa do dia do seu ardente furor". (Is 13.9-13) 
     A própria colocação de Cristo de que nós somos a luz deste mundo, implica que ele se encontra em trevas profundas. Não há esperança para este mundo caído que caminha rumo a ruína; e aqui não estou pregando contra a sustentabilidade moderna do mundo, mas segundo as promessas de seu Criador o fim inevitável é a sua destruição total, e apesar de ser boas as ações para "salvar" os recursos que ele nos dá, nenhuma ação humana pode impedir ou adiar este fim. Portanto, ainda que a própria igreja tenha autoridade dada por Deus para vencer as obras do maligno e triunfar sobre ele e seu sistema escravagista, para uma sociedade como a nossa, no fim nem a igreja consegue mudar o destino final deste planeta. Podemos, como tem se visto na história, transformar valores e estilos de conduta corrompidos dentro de uma sociedade, aplicando a lei de Deus no seu sistema moral, e com isso espelhar, nem que seja de modo ofuscado, a imagem de Deus na sociedade. De fato a igreja tem ajudado a humanidade a refrear seu impulsos, podemos ver isso em países que tem no seu sistema legal aplicações diretas de princípios bíblicos; mas em meio a tudo isso ainda sim o fim deste mundo é inevitável.

     Estou dizendo tudo isso para mostrar que o fim de todo homem regenerado por Deus não é transformar este mundo num novo jardim, mas sim, como diz o Catecismo Maior de Westminster em sua resposta a primeira pergunta "Qual é o fim supremo e principal do homem?": "O fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre". É obvio que o "para sempre" implica algo que vai muito além deste mundo, que por certo não durará uma eternidade. Certamente fomos chamados para viver uma vida piedosa em plena luz, em contraste com aqueles que fazem suas obras nas trevas de tão vergonhosas, mas "se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens" (1Co 15.19).

Deus nos chama para olharmos para frente e não para trás.

     Há uma música que pode nos ajudar a compreender melhor este argumento elaborado, eis o refrão:
"Ah, que saudade. Que saudade de ouvir a tua voz ao entardecer. Ah, que vontade. Que vontade de voltar ao jardim da Inocência." (Paulo César Baruk, Jardim da Inocência)
     Essas palavras expressam de forma perfeita o pensamento de alguns cristãos romantizados de que devemos voltar aquele jardim do qual nunca deveríamos ter saído, e por conta disso, apesar de ser uma bela canção, está longe de ser bíblica. De fato, nunca deveríamos ter saído de lá, pois Deus nos colocou lá e tudo em perfeita harmonia com sua soberana e agradável vontade, mas certo é que saímos daquele jardim, e agora a solução não é voltar a ele ou criar o nosso próprio jardim aqui. Pelo contrário, na primeira promessa de um Redentor, Deus nos convida a olhar para frente e não para trás, parafraseando o proto-evangelho: "virá um descendente da mulher, aquele que triunfara sobre a serpente" (Gn 3.15, compare com Gl 4.4). O ponto aqui é que Adão e Eva agora deveriam ter esperança no futuro com a vinda de um Salvador e não saudades de algo que fora lacrado e interditado para eles.

     Por toda a grande história da redenção nós vemos esse princípio de olhar para o futuro e não para trás. Abraão manda buscar uma esposa para Isaque entre seus parentes na sua terra natal, mas de modo algum é pra ir até la, pois ele tem a frente ainda uma terra prometida pelo Senhor (Gn 24.7,8). Israel era desaprovado por Deus quando lembrava do Egito e se esquecia dá terra que estava por vir, a terra prometida a seus pais (Ex 16.3; Nm 11.5). A mulher de Ló, por algum motivo olhou para trás e pereceu no caminho sem chegar em segurança a cidade que a livraria da ira de Deus (Gn 19.26). Ao começar a reconstrução do templo em Jerusalém, após sua destruição o povo estava olhando para trás e por isso muitos choraram ao lembrar da glória do templo antigo (Ed 3.12,13), mas apesar de não ter a mesma beleza daquele que fora construído por Salomão, ainda sim o profeta Ageu pode dizer que "a glória desta última casa será maior do que a primeira" porque certamente olhava para frente, para um futuro de redenção e glorificação, não para trás e nem para o que estava diante dele naquele momento.

     Diante disso, devemos nos preocupar em viver o agora de modo a glorificar e se alegrar em Deus, mas também devemos meditar e se deleitar em esperança no vigoroso "para sempre" que há de vir. Naquele "dia" estaremos de alguma forma, em certa vantagem em relação aos primeiros pais: Adão e Eva. Para compreender isso vamos analisar os três principais estágios do homem: (1) a inocência do Éden, (2) a queda e suas consequências, (3) a redenção e glorificação final.

A Inocência, a Queda e a Glorificação

1) A Inocência:
"Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, sexto dia." (Gn 1.31)
     Se pudesse usar somente uma palavra para descrever a criação de Deus em Gênesis 1 e 2, esta seria ela: "bom". Deus na criação, apesar de não finalizar cada dia com a descrição de que aquilo era bom, diz no final, ao olhar tudo o que fizera, e estabelece como "muito bom". Para fechar ele abençoa e santifica o sétimo dia para mostrar que tudo estava perfeitamente completo, ou em outras palavras, "está consumado". Se partimos do pressuposto de uma teologia saudável, atribuindo corretamente a Deus as qualidades que Lhe pertencem e que são de sua natureza, chegaremos a conclusão que aqueles atributos chamados comunicáveis são de maneira inerentemente ligados a sua criação. Por exemplo, se a bondade faz parte dos atributos de Deus, então a sua criação é necessariamente boa e não menos que isso. Deus é santo, então a sua criação estava envolta em santidade; pode se ver isso em Adão e Eva, que andavam nus no jardim e não se envergonhavam (Gn 2.25). Não vemos nenhum relato de injustiça, fraude ou mentira nos capítulos 1 e 2, por que a justiça intrínseca de Deus permeava toda a criação. Certamente seria até loucura tentar achar resquício de idolatria nesses capítulos, porque era impossível outro alvo do amor e devoção de Adão e Eva senão o próprio Criador. Em resumo, Adão e Eva juntamente com toda a criação, eram completos em Deus.

     Para suplementar essa completude de Adão e Eva a bíblia diz que eles foram criados à imagem e semelhança de Deus. Representando assim a Deus em toda sua criação e tendo domínio sobre ela. Eles também tinham "a Lei de Deus escrita no seu coração e o poder de cumpri-la" (Confissão de Fé de Westminster 4.2). Mas aqui é importante relembrar que nem todos os atributos de Deus são comunicados ao ser humano e à sua criação.
"Porém, Adão e Eva não eram imutavelmente santos e, por isso, eram passíveis tanto de tentação quanto de pecado. Como a Confissão de Fé de Westminster deixa claro, ambos tinham 'a possibilidade de transgredir [a lei], sendo deixados à liberdade da sua própria vontade, que era passível de mudança' (4.2). Quer dizer, Deus criou Adão em pureza moral com a necessária capacidade inata de cumprir as condições da aliança das obras. Adão e Eva eram portadores da imagem de Deus, mas eram diferentes de Deus em vários aspectos importantes, um dos quais era sua mutabilidade". (Joel R. Beeke e Mark Jones; Teologia Puritana, p. 309)
2) A Queda:
"Eis o que tão somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias". (Ec 7.29)
     Por não possuir a imutabilidade de Deus, e por se ver diante de uma tentação à desobediência direta ao mandamento de Deus, que de acordo com as palavras do próprio Deus levariam à morte, o homem faz do capítulo 3 de Gênesis provavelmente o mais sombrio de toda a bíblia, pois é nele que se registra a queda da humanidade. Se algum dia existiu alguém com livre-arbítrio no nosso meio, Adão e Eva foram os tais. Deus transporta Adão ao jardim para lavrar a terra e expressamente coloca diante dele dois caminhos: a árvore da vida ou a árvore do conhecimento do bem e do mal, a obediência ou a desobediência, a vida ou a morte. Ao mesmo tempo que Adão tinha o poder e a capacidade inata de obedecer conforme vimos na CFW, obviamente não havia nele a incapacidade de desobedecer; o relato bíblico prova isso, pois eles desobedeceram. É a queda do homem. Precisamos responder pelo menos duas perguntas acerca disso: primeiro,"A imagem de Deus no homem foi afetada pela queda?" e segundo, "A posteridade de Adão se torna herdeira desta transgressão?".

     Em primeiro lugar, será que a imagem de Deus foi afetada pela queda? Certamente que sim! O principal indício é que o relacionamento entre Deus e o homem não foi mais o mesmo; a imagem de Deus no homem é aquilo que o torna exclusivo em toda criação, ou seja, ele é o único a se relacionar com o Criador de forma pessoal, mas a queda certamente afetou isso, como se vê na expulsão do jardim. Mas também o fato do homem não mais se relacionar uns com os outros de maneira saudável e pura, demonstra como essa imagem foi afetada (Caim e Abel, Lameque, dilúvio e assim por diante). Porém é importante frisar aqui, que apesar de ter a imagem de Deus no homem sido afetada pelo pecado, ela não foi de todo aniquilada, como diz João Calvino:
"Quando Adão caiu de seu estado original, não há a mínima dúvida de que, por esta defecção, ele veio a alienar-se de Deus. Portanto, embora concordemos que a imagem de Deus não foi nele aniquilada e apagada de todo, todavia foi corrompida a tal ponto que, qualquer coisa que lhe reste, não passa de horrenda deformidade." (As Institutas 1.15.4)
      Há ainda no homem, mesmo no estado de queda, resquício da imagem de Deus que é inata a ele, a prova disso é o mandamento de Deus a Noé após o dilúvio de não derramar o sangue do homem "porque Deus fez o homem segundo a sua imagem" (Gn 9.6). Ela ainda está lá, mesmo sendo ofuscada pela corrupção do pecado, que também se tornou inato ao homem. Ela foi afetada, porém não aniquilada; o que já responde a segunda pergunta, essa queda afetou os descendentes de Adão? Mais uma vez, certamente que sim! Nos tornamos herdeiros dessa desobediência e tão corruptos e inimigos de Deus quanto Adão foi, talvez piores. Quando Adão gera um filho, esse filho não tem mais a imagem perfeita e santa de Deus, mas sim a sua própria imagem corrompida (Gn 5 1-3). O apóstolo Paulo retifica isso dizendo:
"Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram." (Rm 5.12)
      Em resumo, a queda desfigurou não apenas a imagem de Deus em Adão e Eva, mas em toda humanidade posterior a eles, já que eles eram o tronco de toda civilização (At 17.26). Pessoalmente, eu vejo aqui a maior beleza do evangelho de Cristo encarnado. Ele não veio ao mundo no período de Inocência do homem, mas quando este se encontrava em total degradação. Se um rei viesse até seu país, é certo que ele seria levado pelos seus governantes aos lugares mais belos e turísticos; mas o Rei do universo veio entre nós, e andou não em meio a mansões ou monumentos, não em lugares admiráveis e belos, e sim em um beco escuro e úmido de uma humanidade caída, veio e andou entre nós quando sua criação se encontrava em destruição e degeneração, e é isto que o torna simplesmente mais gracioso do que já é.

3) A Glorificação:
"Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é." (1Jo 3.2)
      Sem a esperança bendita de uma gloriosa vida futura e completa em Deus, a parte deste mundo, as riquezas que adquirimos aqui só nos tornariam os mais infelizes de todos os homens. A grande boa notícia do evangelho de Cristo é saber que Deus, mesmo em meio a escuridão que sua criação adentrou, tem o seu povo de propriedade exclusiva sua, que foram previamente predestinados "para serem conformes a imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito de muitos irmãos" (Rm 8.29). Ele veio para resgatar este povo, e "não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, (...), mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo" (1Pe 1.18,19). A bíblia diz que quando nossos olhos são desvendados para contemplarmos a glória de Deus no evangelho de Cristo, desvendar esse que não procede de nós mas do Espírito Santo, somos então transformados "de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito" (2Co 3.18). Ao decorrer do Novo Testamento, fica evidente que em Cristo, a imagem de Deus é gradualmente restaurada em seu povo.

     De acordo com 1 João 3.2 ainda não se manifestou o que haveremos de ser, deixando uma ideia implícita de que a nossa glorificação final e perfeita ocorrera somente em sua revelação final, escatologicamente falando. Mesmo regenerados e salvos do domínio do pecado, ainda não somos a perfeição que seremos no fim. Podemos ver isso pelo fato de sermos chamados, nesse mundo ainda caído, a participarmos dos sofrimentos de Cristo (Fp 3.10, 2Tm 1.8), porém com a esperança de que também participaremos da sua glorificação (Rm 8.17). Mas precisamos responder uma ultima pergunta, de que forma seremos mais completos naquele grande Dia?

     Primeiro, não viveremos mais alienados de Deus, pois "Deus habitará com eles" (Ap 21.3). Literalmente Deus fará um tabernáculo permanente entre os remidos, algo que não parece muito obvio no jardim do Éden com Adão e Eva, que aparentemente não tinham contato integral com o Criador, afinal após a queda eles "ouviram a voz de Deus, que andava no jardim pela viração do dia" (Gn 3.8); será que Deus andava somente no jardim quando virava o dia? Não sabemos, mas o fato de pecarem e desobedecerem deixa implícito que não havia naquele momento contato visual ou audível de Deus, do contrário eles não pecariam. Segundo, Adão e Eva tinham a capacidade tanto de obedecer como também de desobedecer à Deus, fazendo o que bem entenderem de seu livre-arbítrio, eles tinham dois possíveis caminhos a trilhar, a árvore da Vida ou a árvore do conhecimento do bem e do mal, ou seja, desobedecer era uma possibilidade; algo que não haverá de forma alguma na Nova Jerusalém, aonde só há a descrição da árvore da vida, e que por causa dela "nunca mais haverá maldição" (Ap 22.2,3). Ironicamente, o livre-arbítrio que tem causado tantas controvérsias na historia da Igreja não existe no novo céu e na nova terra, não existe a possibilidade de pecar naquela eternidade e talvez esse seja o maior motivo de estarmos em vantagem em relação a Adão e Eva no jardim. Terceiro, se o pecado não existe mais e não é uma possibilidade futura, consequentemente aniquilada será a morte, o choro, o luto e a dor, assim como seus derivados que causam sofrimento (Ap 21.4).

     Já me desculpando pelas muitas palavras e com temor lembrando que, "no muito falar não falta transgressão" (Pv 10.19) quero terminar com algumas palavras a mais. Será que é perda tempo meditarmos no futuro e suas implicações? Pode de alguma forma este tipo de meditação afetar nossa vida prática hoje? Creio que a resposta da primeira pergunta seja "não", mas para a segunda afirmo com um vigoroso "sim". Certamente se não tivermos esperanças acerca de uma vida futura e gloriosa em Cristo, seremos semelhantes aos mais infelizes que já habitaram neste mundo caído. Em contrapartida se guardarmos firmemente a razão de nossa esperança final em Cristo, estaremos em uma fé viva e piedosa olhando, com a mesma fé, a perfeita completude que nos aguarda. Se isso não influencia a nossa vida diária, receio de nossa real conversão.

A Graça e a Paz de Cristo a todos os que o amam.

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